sábado, 15 de outubro de 2011

A árvore da melancholia



Neste filme de Lars Von Trier a Terra vai para o saco. E Francis Fukuyama vai junto. Aliás, por onde andam minhas pipocas?

Lars von Trier, com o seu Melancholia, estimula debates apaixonados sobre o sentido e o significado do filme. Para alguns, ele se revela epígono da cineasta Leni Riefenstahl (1902-2003), famosa pelos filmes de propaganda que realizou para o Partido Nacional-Socialista Alemão. Para uma parcela da mídia, as declarações do diretor afirmando sua simpatia pelo führer estão no DNA da fita. 

O que eu quero dizer é que para produzir um filme ‘nazista’, como afirmaram certos críticos, o diretor precisaria contar com o apoio de produtores favoráveis a essa ideologia. Para quem analisa filmes, os dados sobre a produção são indispensáveis. No caso de Melancholia os créditos vão para a Dinamarca, Suécia, França, Itália, Alemanha. Lars Von Trier teria conseguido nesses países encontrar um celeiro de endinheirados produtores nazistas? Isso não parece provável. 

Essa ideia do filme como uma cenografia wagneriana celebrando o reich de mil anos parece frágil, até porque com aquela colisão dos planetas o IV Reich viraria poeira cósmica. Penso, com a minha filosofia de galinheiro, que Hitler ou seus sucessores não se sentiriam muito à vontade sabendo que a Terra seria engolida por um planeta alienígena. E não sabemos se Leni Riefenstahl aprovaria, em termos cinematográficos, claro. 

Outros se debruçam sobre o filme com instrumentos mais precisos. Trata-se de uma metáfora sobre a solidão cósmica. Sobre o nada que finalmente é existir quando se abre a mão da transcendência. Outros nadam na etimologia do termo. Ora o aproximam da depressão, ora o afastam como algo mais nefasto ainda. Nadando entre estas análises de críticos cinematográficos, psicólogos, psicanalistas, filósofos, tenho minha ansiedade potencializada, o que faz o dono da farmácia próxima de minha casa gostar do filme pela compra de ansiolíticos que tenho feito nos últimos dias. 

Penso sempre em um filme como um enigma, um objeto a ser estudado coletivamente. E isso não é original. Deixando-me levar idiotamente pelas imagens de Lars Von Trier suspeito que ele fez uma ironia fílmica. Não um disaster movie - pode ser que ele ainda aprenda com Hollywood - como foi catalogado, mas uma ficção sobre o que pode ser uma experiência estética e histórica do fim do mundo antes do fim. Som. Imagem. O mundo devorado pela câmera nazi de Lars Von Trier. Será? 

Um filme para ser visto sem ser devorado pelas pipocas. Sem a ambição de dar a última palavra sobre ele, reivindico aqui o direito de comentar o encantamento em mim exercido pelo ritmo do filme. 

Como uma obra de arte é sempre aberta - já li isso em algum lugar - quero sustentar algumas idéias mirabolantes sobre a fita. Uma delas é que a primeira parte, a do casamento, pode ser uma metáfora da destruição da ordem burguesa assentada num sistema planetário ancorado nos sagrados votos do matrimônio, na celebração da família, no direito à propriedade. 

A partir das primeiras imagens - as sequências no interior da limusine branca - o universo já se estreita. É até meio besta - e se o diretor disse que simpatiza com o nazismo, então ele é uma besta mesmo. As sequências da limusine já são um prenúncio do fim, a vida - que não se sabe exatamente o que é – que diminui, encolhe, miniaturiza. Minha vontade de andar de limusine passou. 

O existir no des-conforto da limusine, o que um espectador atento poderá observar, será cortada, talhada, salva, talvez, pelo canivete dado pelo sobrinho Leo. Uma noiva, um canivete, um inocente. Ali está, logo no início do filme, a salvação. Ela está ali naquela lâmina, e todo mundo sabe, na hora do sufoco, o que um canivete pode fazer, não é mesmo? 

Mas ali há, talvez, uma outra chave: para Leo, a tia Justine é a Tia Quebra-Braços. Essa tia atormentada, melancolizada, deprimida, enclausurada em si mesma, é um osso duro de roer. Ela dá conta de qualquer parada, atrás da fragilidade temos uma heroína às avessas. Claro, Justine não é nenhuma mulher maravilha, não salva a si mesma, enlouquece a todos e tudo a sua volta, mas, talvez por isso mesmo, há algo em que se possa confiar nessa mulher. Ela, a Tia Quebra-Braços. Pergunto: quantos têm uma tia assim? 

Depois Justine gosta de cavalos. O que não é pouco. Em algumas sequências o belo cavalo simplesmente recusa a atravessar uma ponte pequena e estreita na propriedade de John e Claire, cunhado e irmã de Justine. Ora, o sentido da cavalgada naquele plano onde a câmera como que voa para nenhum lugar, aquele passeio para tirar Justine da indolência parece atirá-la num fosso sem fundo. O cavalo não compactua com a fuga. Não tem para onde ir. Não há esperança. Não há salvação. A inquietação dos cavalos no estábulo lembra ao espectador que alguma coisa terrível vai acontecer. Seriam os cavalo melancólicos ou menos tolos que seus donos? 

Limusine/canivete/cavalo. John, o cunhado e astrônomo amador, parece, entre as vindas e idas de Justine, o único a saber o que realmente acontecerá. Mas a crença de John que Melancholia passará pela Terra assim como passou por Vênus, sem causar estrago algum, parece assentada em valores pecuniários. Ele reclama do alto custo da festa, sente os dedos doerem ao pagar o taxista quando Justine retorna para sua mansão e, espertamente, compra provisões e equipamentos de emergência para que ninguém fique no escuro com a aproximação do Planeta. “Jack Bauer” não se dá muito bem neste filme. O homem que salva o império americano (na TV) é a primeira baixa que temos no filme. Mas, quem pode condená-lo, julgá-lo? E como cunhado ele é um chato. Merece ter uma Justine na sua vida. 

Melancholia seria uma zombaria com Armageddon? Neste filme, Bruce Willis - com outros cowboys - salva a Terra da colisão com um asteróide (parece que bem maior que o planeta do filme de Lars Von Trier). Faltou grana para a produção? Leni Riefenstahl teria uma solução estética e técnica melhor, mais apurada que o Lars Von Trier? 

Estas fitas que atrapalham a minha comilança de pipocas durante a projeção me dão um troço. Abobalhado, lembrei-me de A Estrada Perdida, do David Lynch. O cosmos é uma estrada perdida. O fato é que de uma maneira hollywoodiana ou existencialista o tema do fim do mundo alimenta a indústria cinematográfica e a existência consumista das pessoas. Sem isso os livros de auto-ajuda não teriam muita funcionalidade. Parece que Lars Von Trier filmou um Heavy Mental, e como ele era (ou é) um homem de dogmas, intelectuais param para pensar em seu filme. E a melancolia talvez seja a maçã de Sodoma. E o filme talvez seja sobre uma maçã. A maçã que abriu nossos olhos. E trouxe suor aos nossos rostos. E afinal de contas, para quê? 

A festa de casamento é animada. Quem se lembra da trilha dessas sequências concordará. Como é que esse dinamarquês foi colocar “La Bamba” na trilha? O David Lynch colocou “Insensatez”. Talvez ele tenha colocado por isso: para bailar é preciso um pouco de graça. Ou é o diretor no sufoco querendo segurar um pouco mais o espectador sem pipocas na cadeira do cinema? Nessa sequência eu trocaria o John Hurt pelo Jerry Lewis, isso para não dizer que não falei dos talhares de ouro no bolso do pai da noiva. 

Outro plano que me deixou intrigado: o banho de Justine. Nua sobre as pedras oferecendo o seu monte de Vênus ao insaciável Melancholia, que parece saborear o oferecimento. É só prestar atenção na fotografia. Nem me lembrei das pipocas, quedei-me contemplativo, melancólico talvez. Disseram-me que aquela cena é o próprio diretor piradão que não conseguia ele mesmo entrar na banheira de sua casa. Depois dessa sequência comecei achar qualquer banheira muito pequena. Muitos, no êxtase sexual, sentem a Terra tremer. Justine vai além: ela sente a Terra sendo engolida. E ela é safada e poética (safada, já havia transado com o aprendiz de publicidade... não dá mesmo para confiar nos poetas, ao menos nos verdadeiros). 

E temos a irmã. Um canivete cego. O esnobismo de querer celebrar o final dos tempos com champagne e a Nona de Beethoven, asperamente impedida por uma Justine pés-no-chão. Não sei se o filme é nazista ou se prova que o Prozac já era num caso destes. Mas se surgir um planeta por aí (não um desses produzidos por Hollywood ou Lars Von Trier), mais do que provisões e ansiolíticos precisaremos é de um canivete e uma Tia Quebra Braços. Neste filme, a Terra vai para o saco. E Francis Fukuyama vai junto. 

Porque se um houver un gran finale cósmico não em termos cinematográficos, mas em termos reais (seja lá o que isso for), só haverá uma saída: a caverna mágica! E quando você entrar nela, adulto ou criança, feche os olhos e fique de mãos dadas com sua “Tia Quebra-Braços”. Seja lá como, Lars Von Trier deu ao cinema um dos mais belos unhappy end. E no final não sabemos se abrimos ou fechamos os olhos. 

Ainda não assisti A Árvore da Vida, de Terrence Malick. Outro furor cinematográfico neste a gosto sem Glauber. Pode ser que um dos galhos dessa árvore seja a melancolia. 

27/8/2011 
Leonardo Carmo

Publicado em Via Política: Livre Informação e Cultura

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