domingo, 10 de março de 2013


    o fantasma da educação nas barricadas do cinema II



                     

                                                               Nina Ivanisin - Slovenka
 Especial para o Jornal Opção Cultural Edição 1966 de 10 de março a 16 de março de 2013
 Ensaio
  - http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/o-fantasma-da-educacao-nas-barricadas-do-cinema-parte-2

O cinema do Leste europeu exibe outras faces do socialismo soviético diferentes da promessa da realização do paraíso no cenário terrestre

Uma discussão forte na análise fílmica trata do problema da representação do “Shoah” no ci­nema.  Como representar o irrepresentável? Para Jean-Luc Godard,  em “A Vida É Bela” (1998), de Ro­berto Benigni, a mediocridade não vem da indignidade ética em fabular o horror nazista mas na falta de ficção do filme. Claude Lanzmann, di­retor de “Shoah”, 1985, diz que ao horror do extermínio nenhuma ima­gem pode ser adequada. Isso porque a imagem sempre banaliza os extremos e empresta ao crime uma face humana. Mesmo assim, o cinema do Leste europeu — e não só ele — tem trazido ao Ocidente outras faces do socialismo soviético diferentes da promessa da realização do paraíso no cenário terrestre. O cinema é uma fábrica de sonhos e estes podem revelar-se também uma usina de horrores. O objetivo desse texto, meramente informativo, é discutir como o cinema tem se ocupado da história como objeto.  Tenta­remos abordar o problema em alguns exemplos de filmes europeus.

Exibido sem estardalhaço pú­blico no Brasil,  “Slovenka” ou “Slo­­venia Girl”,  de Damjan Ko­zole, uma co-produção Eslovênia, Ale­manha, Sérvia e Croácia coloca em ação uma prostituta pelas ruas da capital Liubliana. Ao falarmos de prostituição estamos falando em política no sentido positivo do termo.
No enredo, Alexandra — Nina Ivanisin —  é uma jovem de Krsko, estudante de  Letras na Univer­sidade de Liubliana. Ela planeja ganhar o mundo. Trabalhando como prostituta, sua vida segue do jeito que queria, mas uma morte acidental a colocará em risco e a faz pensar no que vem fazendo para conquistar sua independência e sustento.
À interrogação sobre o que é analisar um filme na perspectiva histórica indico duas fontes:  Marc Ferro e Michèle Lagny. A discussão é: como materializar a história no filme sem reduzi-la ao espetáculo? Slovenka: garota síntese da Ale­manha, Croácia, Eslovênia e Sérvia. Depois da autodissolução da URSS o que restou senão o crime organizado e a prostituição?
Resposta: sobrou  a “Terra de Ninguém”, 2001, sobre a guerra entre servos e croatas dirigido por Danis Tanovic. “Slovenka” se situa entre este filme e o radical “Para Sempre Lylia”, de Lukas Moodys­son, 2002, história de um anjo en­vergonhado no interior da Estônia. O que amarra estes filmes ao “Taxi Blues”, 1990, de Pavel Lugin, e ao “Bárbara”, 2012, de Christian Pet­zold, é uma escritura fílmica da história na qual a estética soma-se à experiência histórica.
Michèle Lagny no ensaio “O Cinema Como Fonte da História”, pergunta:  “O cinema pode servir para desenvolver uma história crítica?” Não se pretende dar a resposta neste comentário, mas acrescentar que a história crítica inclui uma crítica da economia-política e, nesse caso, a matéria ou moeda de troca é o corpo de uma prostituta que procura se inserir no mercado global e nele sobreviver apelando para um caminho radical. Slovenka ambiciona melhorar sua vida, comprar uma apartamento, pagar as dívidas, e o faz percorrendo um caminho perigoso: ela é dona de seu corpo e de seus programas. Não são diferentes os caminhos buscados pelos personagens Bárbara e Stella ou Lyosha, o saxofonista de “Taxi Blues”.
Em “Slovenka”, um homem do alto escalão da União Europeia morre durante um encontro com a protagonista. Obeso, para sermos sutis, ele é a caricatura da Europa pós-muro de Berlim que esmaga as pequenas repúblicas do Leste europeu. A garota foge, mas é localizada por uma empresa de prostituição que não aceita autonomia no exercício da função. Hoje tudo está reduzido ao corporativismo e ao sindicalismo. Ou ela se submete às novas regras do mercado ou o preço será caro, como se vê no filme.
O socialismo é uma porta fechada para Slovenka. No filme há uma sequência pela espera do cliente italiano no quarto de hotel ao mesmo tempo que ele mente para a esposa sobre uma reunião de negócios. Alexandra mostra a calcinha. Tempo é dinheiro, ela diz. Tempo ou dinheiro não são problemas, responde ele.
Slovenka ou Alexandra tem a sua rotina. Nela, surge o ex-namorado que deseja separar-se da esposa e viver com a garota inocente que ela aparenta ser; o pai, de meia-idade, membro de uma banda rock — e aí o rock cumpre uma função libertária no filme — com um nome sintomático: Eletroshock. Esse mundo desolado, marcado por encontros frios, animalescos, destituídos de qualquer sentido para ela ou para os clientes atende a lógica dominante desde sempre: o que interessa é o prazer imediato. O gozo rápido. As notas de euro na carteira.
Slovenka pode ser uma garota do Leste europeu ou de uma metrópole, como São Paulo, ou de uma cidade média, como Goiânia. Em comum, os celulares que ela carrega na bolsa para controlar suas atividades. Para que tantos celulares?, pergunta o pai. Eles agora custam barato, responde ela. Ou, em outra cena, Alexandra comenta que todos existimos na solidão, cada um a seu modo. Os planos em que ela está sozinha no seu apartamento — e quando ela não está só? —, as mentiras para a família e para os amigos, revelam outra ambiguidade deste filme: não é mais possível ser verdadeiro, ser o que se é ou ser o que se deseja ser. O caminho mais rápido é o da venda do corpo. Mas, quem é a prostituta? Os dramas de Bárbara e Stella não são diferentes: a busca pela liberdade é paga em campos de reeducação socialista.
Há nesses filmes tensão, vigilância do aparelho estatal, suspeitas, insegurança, terror. Em “Slovenka”, toda a ação é permeada de sirenes de ambulância e carros de polícia.  Os jornais e a televisão informam que as autoridades estão empenhadas em localizar Slovenka. O que se tem é um fechamento de portas, um estreitamento da sociedade. As sirenes mencionam o que há de oculto no filme: Liubliana é dominada pelo crime, pela exploração, pela violência, Alexandra é só uma figurante deste cenário. A prostituta peregrinando pelas ruas não é diferente daqueles que na crise buscam trabalho como ela busca clientes. Bárbara e Stella e o boêmio moscovita são vigiados ostensivamente.
Slovenka é a nowhere girl. No  plano final — o que seria como encerrar uma história no sentido manuscrito — , ela fuma na porta do bar onde o pai faz um show de rock. A câmera enquadra-a, lentamente, aproximando de modo ameaçador e sutil sobre a personagem, até fechar, no seu corpo, em plano médio, ela cantando e fumando, a imagem congelada. Há muitas Slovenkas no mundo. E nenhum lugar há para elas. Michèle Lagny pergunta: “O que é que o cinema nos traz a mais que os outros documentos?” Talvez a história dos corpos de Slovenka, Bárbara e Stella ou Lyosha possam alimentar a discussão.

Leonardo Carmo é mestre em Educação Brasileira pela UFG