terça-feira, 31 de dezembro de 2013

LENHA NA FOGUEIRA
O Dinossauro e o Lago das Rosas
Jornal Pagina Aberta Tocantins/Goiás, 05 a 15 de Dezembro de 2013

Leonardo Carmo*



        Em 2005, Goiânia viveu curioso caso calote no setor dos agronegócios. Empresários investindo nas avestruzes como novas galinhas de ouro, tiveram graves prejuízos em suas finanças.
         Em 2012, o Zoológico de Goiânia registrou a morte de seis bichos. Sabe-se que o local já perdeu quase metade do plantel desde 2005, quando abrigava 780 espécimes. Hoje conta apenas com 491 animais. Somente em 2011, outros 63 morreram. Em 2010, foram 68, e, em 2009, 109. Entre eles dois hipopótamos, um leão, uma onça, um tamanduá-bandeira, uma girafa, um jacaré-açu e uma avestruz. A asa negra da mosca pousou  sua gosma nos animais do zoo e no sonho dos investidores.
            Alegoricamente esses fatos permitem articular  a Teoria da Educação com o filme Jurassic Park, de Steven Spielberg, cujos ovos de dinossauros renderam milhões aos produtores. Imaginem um T.Rex  no Lago das Rosas! As cercas do zoológico que não impediram a morte dos animais tampouco controlariam a fuga de um Velociraptor. Goiânia nessa ficção seria rapidamente destroçada pelas mandíbulas e garras jurássicas. A situação seria a mesma  de  San Diego em O Mundo Perdido, Jurassic Park, segundo episódio da trilogia.
O Horto Florestal e o Jurassic Park,  são literalmente zonas de diversão e morte. Qualquer  descuido pode ser fatal para os homens ou para os animais. No cinema o parque torna-se o espaço do horror e da destruição, do imprevisível. Em muitos filmes, o parque – espaço do conhecimento e do lazer – torna-se sinistro e ameaçador. Um exemplo clássico é o filme  O Gabinete do Doutor Caligari, Robert Wiene, 1920.
O crítico Siegfried Kracauer explica na obra  De Caligari a Hitler – uma história psicológica do cinema alemão - que o parque não é liberdade, mas anarquia gerando caos. Em termos alegóricos, o sistema educacional lembra um parque entrelaçado com os muros das prisões, dos hospitais, das igrejas, dos quartéis: uma falsa promessa de felicidade e libertação.  A educação transforma-se em saber que aprisiona.
        Em A Outra Face, de John Woo,1997, o  parque  é o espaço da desordem dos sentidos. O mesmo acontece em  O Fantasma da Liberdade, Luis Buñuel, 1974. No final deste filme,  uma chacina no zoo de Paris, aterroriza o espectador com sons de tiros, insinuando uma matança de animais e visitantes ao mesmo tempo    
     A alegoria  dos dinossauros e avestruzes, articulada com a teoria da educação, talvez possa  ser formulada assim: a escola é esse parque no qual  funcionários e professores têm dificuldades de exercer  uma influência pedagógica no - sentido forte do termo - , sobre os alunos. A teoria da educação – a cerca inteligente – que deveria proteger quem está atrás e além delas encontra-se arrebentada. Essa cerca, se aceita a metáfora, deveriam ser a do saber, da libertação. O fato é os estudantes  são agrupados em celas chamadas salas de aulas lotadas e muitos professores já perceberam ser mais carcereiros e menos educadores.
      A experiência de uma educação libertária na qual uma criança deve viver sua própria vida – não uma vida que seus pais acreditem que ela deva viver, não uma vida decidida por um educador que supõe saber o que é melhor para a criança ,parece ter fracassado.  O que interessa é a ordem e esse tipo de ordem tem gerado o caos.
        Caos é  um conceito fundamental no filme de Spielberg.  Os supercomputadores - metanarrativas educacionais – fracassam  no lago burocrático. A situação fora  de controle no Jurassic Park ou no Lago das Rosas é menos perigosa que a de nossas instituições de ensino .  Do lado de fora, além das cercas e acerca do conhecimento, o T. REX é a teoria educacional inibindo talento e minando o todo o processo de uma educação formal efetiva. O filósofo Immanuel Kant, comentou existirem duas invenções humanas que podem ser consideradas mais difíceis que qualquer outra: a arte do governo e a arte da educação; e as pessoas continuam a discutir inclusive seus significados.
            As profissões de paleontólogo ou professor exigem a um só tempo o saber especializado e o generalista. Um paleontólogo pode dar aulas – como Allan Grant no filme e o professor não raro enfrenta a burocracia jurássica. Ambos parecem ser  espécimes condenadas à extinção. Em uma cena do Jurassic Park  um técnico em informática ironiza que os computadores em breve substituiriam os paleontólogos.Na outra ponta, professores recém-admitidos em concurso público abandonam as escolas, anseiam superar cercas da burocracia ineficiente como os animais pré-históricos  escapam do Parque Jurássico.
          A educação parece trabalhar contra a inteligência. Os dinossauros digitalizados  do cinema testemunham a monstruosidade do sistema prisional brasileiro e remete à ineficácia do sistema educacional do País evidenciando que o homem é o mais indomável dos animais. Como reeducar o que nunca foi educado, como haver reeducação se não há Educação? Essa observação se correta, talvez nos permita dizer: no filme de Steven Spielberg, os dinossauros não atacam os seres humanos. Eles, assustados, se defendem dos neotrogloditas.



Leonardo Carmo - auto-retrato

segunda-feira, 28 de outubro de 2013


velvet underground

                                  

domingo, 27 de outubro de 2013

aura do crime


                                        
Edição 1999 de 27 de outubro a 2 de novembro de 2013
Cinema/Elysium
O futuro entre a fome e a fúria
O novo filme do sul-africano Neill Blomkamp potencializa o irreversível: o fosso entre ricos e pobres é insuperável
TriStar Pictures/Divulgação

     
Os atores Wagner Moura e Matt Damon, em cena de “Elysium”, ficção futurista que retrata a terra como um grande lixão


Leonardo Carmo* 
Especial para o Jornal Opção
“Elysium”, de Neill Blomkamp, ficção sobre a Ter­ra em 2159, é me­nos uma ficção de um futuro imperfeito e mais uma fantasmagoria do presente. Neste mundo, a humanidade é dividida em dois grupos: o primeiro, riquíssimo, mora na estação espacial Elysium, e o outro grupo, o pobre, vive numa Terra miserável, doente, totalitária.
 
Mas o que é uma fantasmagoria? Fantasmagoria é aquilo que tem a aparência do real e se torna mais real pela aparência, é o real vivido e consumido. A fantasmagoria é a alegoria da contemporaneidade, seus espectros, diferentemente daqueles do barroco teatral, são históricos e tecnológicos. Elysium é o fantasma da idade de ouro do capital, da burguesia financeira.

Elysium, a estação na órbita da Terra, recorda os Campos Elíseos  dos guerreiros da mitologia greco-romana. No tempo do filme, os heróis mitológicos da sociedade pós-industrial, obtêm, ao seu modo,  a imortalidade.  Nesse sentido o filme é uma crítica aos aspectos regressivos da tecnologia que opera milagres para a casta detentora do capital em uma perspectiva utópica restrita. Essa fantasmagoria “tecnológica” nos filmes de ficção marca época com “Exterminador do Futuro 2: o Julgamento Final”, de James Came­ron, 1991, e tem em suas origens “A Guerra dos Mundos”, transmitida pelo rádio nos Estados Unidos,  nos anos 1940, por Orson Welles.

A crítica dos aspectos catastróficos do progresso possibilita ao cinema de massa a análise fílmica para além do julgamento de um filme como obra de arte. O que interessa é o conhecimento dado pela mediação da obra de ficção com a realidade. Os aspectos expressivos dessas obras não raro estão em confronto com o establishment  mas o seu sucesso comercial limita os críticos ao velho embate “cinema X Cinema”. Costa Gavras em o “Capital”, (2013) constrói sua metáfora dos Campos Elíseos no Fénix Bank francês. A crítica da economia política é o argumento da arte cinematográfica desde o fantasmático “Viagem à Lua”, (1902) ao “Gravidade”, (2013).

A desconfiança na infalibilidade tecnológica é o tema de Neill Blomkamp em “Distrito 9”, no qual, para o desespero dos ufólogos, alienígenas chegam doentes ao planeta Terra e são confinados em guetos da Cidade do Cabo. O ponto crucial neste filme é que não há uma tecnologia superior alhures e os alienígenas nem mesmo po­dem contar com um programa do tipo minha casa minha vida, uma fantasmagoria contemporânea.

“Elysium” potencializa o irreversível: o fosso entre os ricos e os pobres é insuperável. A ideia de um progresso interminável é o que empurra a humanidade ou a história, se quisermos, para extremos como os da narrativa deste filme. No filme, com frequência os moradores de Los Angeles olham para o céu vislumbrando Elysium, espaço da saúde, da cura, da felicidade, da longevidade perenes. A sociedade  perfeita só é  possível para a minoria.

Elysium é a utópica superação do reino da necessidade. Los An­ge­les é uma Jerusalém cuja produção principal é a de robôs e armas de guerra. Ne­la, o “lumpenproletariat” sobrevive controlado pelo Estado policial-militar. Neill Blomkamp filma o espetáculo como reflexão da miséria e do totalitarismo, encontrados em obras como “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Or­well. A miséria nessas  obras desmistificam as utopias do igualitarismo.

Elysium é a distopia, a disfunção, a fome, a fúria. Esse tema re­cor­rente reaparece em outros filmes, como “Mad Max”, (1979). A radicalidade de “Elysium” vai além da dicotomia Império versus República, de “Guerra das Estre­las”, (1997), e exibe a existência fantasmagórica pelo domínio dos milionários de vida eterna. O futuro é plutocrático.

Essas referências reforçam a pretensão do filme como crítica do espetáculo da abundância e da pobreza. O espectador atento perceberá que “Elysium” dialoga com o “Doutor Fantástico” (1964), de Stan­ley Kubrick, e que Wernher Von Braun, de Peter  Sellers, parece ter inspirado a atuação do Spider de Wagner Moura. As semelhanças ficam por conta da bizarrice de ambos. O primeiro, neuroticamente contido, cerebral, celebra o fim do mundo como o início de uma nova era. O segundo, temperamental, explosivo, quer arrancar o poder dos encastelados em Elysium e promover a cura e a felicidade  terrenas. No filme, a fantasmagoria da cura que desce dos céus para a Terra.

Elysium lembra a estação espacial de “2001, Uma Odisseia no Espa­ço”, de Kubrick. Mas, se na ficção de Arthur C. Clark é um elaborado terror cósmico computadorizado, em 2159 isso se confirma como uma terrível obra da racionalidade. O papel que o cinema desempenha na sociedade contemporânea é tanto mais sério quanto mais aspecto de entretenimento aparentemente possuir. “Elysium” é um convite para refletirmos sobre 2013,  pelo menos no aspecto da saúde.  

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, enfrenta resistência em ampliar um plano de saúde pública para os pobres norte-americanos. O Brasil vive às turras com a chegada de médicos cubanos e o programa Mais Médicos. No filme, o gran finale são as técnicas médicas antes disponíveis só aos cidadãos de Elysium, colocadas ao alcance de milhares de enfermos. Nesse sentido, bem-vindo Spider, interpretado por um frenético Wagner Moura, em plena posse da arte de atuar.
*É coveiro em Pilar de Goiás
  

domingo, 11 de agosto de 2013

Análise

Wolverine, O guarda-costas do capitalismo

Leonardo Carmo - Especial para O POPULAR11 de agosto de 2013 (domingo)
FOTOD_H_2C_A1111-B_WEB
Wolverine: o herói seria um símbolo do capitalismo?
Wolverine: O Imortal (EUA, 2013), dirigido por John Mangold, com Hugh Jackman, é pura emoção barata, quinquilharia kitsch e aparentemente anti-intelectual. Uma droga, literalmente.
As drogas provocam efeitos psicofísicos. Estes nada mais são que efeitos estéticos. Do mesmo modo, produtos culturais afetam nossa percepção. Wolverine é um desses produtos da indústria cultural que alimenta a drogadição
Nesse mau gosto reside o valor documental do filme, uma metáfora da imortalidade do capitalismo. Há uma estreita correlação entre a indestrutibilidade de Wolverine e a pretensa perenidade do capitalismo.
Nos termos de uma formulação da crítica da cultura de Walter Benjamin, há história nos detritos, no lixo, no material desprezível e invisível produzido na sociedade. A história se encontra quer nas grandes como nas piores obras, as mais detestáveis, menosprezadas pela intelligentsia e o bom gosto.
O filme baseia-se na luta de Wolverine para proteger Mariko Yashida, a herdeira de uma megacorporação, contra a Yakuza, a máfia japonesa. O recado é claro: quem está ao lado de Wolverine, sobrevive. Quem não está, morre sob a ação da bomba atômica, pelas suas garras afiadas ou pelos golpes das espadas samurais que ele aprende a empunhar.
Wolverine: O Imortal tem decepcionado os mais ardorosos admiradores desse Marvel. Mas o filme pode mostrar-se valioso para o historiador do cinema, interessado em ver além das aparências e revelar a nudez das contradições do aparentemente banal e insosso.
Wolverine tem como tema a luta de dois gigantes econômicos: os Estados Unidos e o Japão. A santa ingenuidade dos cosplays pode ser atribuída a uma mínima formação cultural, mas achar que a cultura de massa não tem os seus requintes é um equívoco.
As costumeiras críticas e falhas enumeradas no caso deste filme não atraem nenhum ganho. É inegável o desapreço para com o Hagakure – O Livro do Samurai, clássico de Yamamoto Tsunetomo, este, sim, um samurai autêntico. E menos ainda tem a ver com o Rashomon de Ryûnosuke Akutagawa e os seus contos nonsense. O filme vulgariza a influência da cultura samurai que durou 700 anos e ainda imprime marcas na cultura japonesa. Essa vulgarização aponta para a face oculta da história e a imposição ideológico-cultural dos Estados Unidos sobre o Japão.
Por exemplo: Yushida, o soldado salvo por Wolverine do ataque a Nagasaki, que recusa minutos antes da explosão atômica a cometer o harakiri, é um covarde. A sobrevivência dele se deve ao acaso e à sorte de estar ao lado do mutante, por sua vez imune aos efeitos da radioatividade .
Yushida, sobrevivendo em condições catastróficas, é picado pela mosca da vida eterna. É o samurai que não quer morrer! Ele envergonha toda a tradição. Um verdadeiro samurai não hesita em morrer e para ele a maior desonra é não morrer em combate. Um samurai não aspira à imortalidade, mas um capitalista, sim.
Yushida é o Japão moderno, o megaimpério econômico pós-Nagasaki. No filme, velho e doente, Yushida recorre a seu salvador e confia a Wolverine a tarefa de proteger Mariko, a herdeira do império, o que a tornará a mulher mais poderosa do Japão.
Wolverine representa a potência militar e econômica, herdeira da Grande Guerra e da loucura nazista. Wolverine é o retrato da indestrutibilidade do Tio Sam. Mas ele é também Logan,o ermitão que vive na floresta, cuja única companhia é o urso Grizzly, o qual ele é obrigado a matar, abreviando o sofrimento do animal, causado por caçadores inescrupulosos que atiram nele flechas envenenadas.
Wolverine conta com a cumplicidade sensual e mortífera das guerreiras Rila Fukushima (Yukio) e Tao Okamoto (Mariko). A derrocada de Yushida é a derrota do desejo da imortalidade do Japão. O triunfo de Wolverine é uma vitória econômica e afirma a supremacia norte-americana na promessa de Mariko em realizar um “projeto econômico que vise o bem-estar do homem”.
Wolverine: O Imortal é o guarda-costas do capitalismo. Pela segunda vez, os Estados Unidos colocam de joelhos o império do sol nascente. Muitas aventuras de Wolverine ainda virão. Uma delas, talvez, seja o confronto com esse peso-pesado inimigo dos Estados Unidos: Edward Snowden, até onde se sabe, asilado em algum lugar da Rússia, quem sabe, sob a guarda de um urso pardo siberiano.

Leonardo Carmo é mestre em Educação Brasileira pela UFG e autor de O Cinema da Metafísica Bárbarae O Cinema do Feitiço contra o Feiticeiro, publicados pela PUC-GO em 2012

domingo, 21 de julho de 2013

www.opopular.com.br

Ideias

Crítica dos Tempos Sombrios

Leonardo Carmo - Especial para O POPULAR21 de julho de 2013 (domingo)
Divulgação
magazine
Bárbara Sukowa (de azul, a esq.), como Hannah Arendt no filme de Margarethe von Trotta
Hannah Arendt, (1905-1975), filósofa política nascida em Hannover (Alemanha), de origens judaicas, é a protagonista do novo filme de Margarethe von Trotta, com Barbara Sukowa interpretando uma das mais influentes pensadoras do século 20.
O filme, intitulado simplesmente Hannah Arendt, é menos uma introdução à sua teoria política e mais uma obra orientada para o público pouco familiarizado com suas ideias. A ação se concentra na cobertura jornalística do julgamento de Adolf Eichmann – carrasco de judeus – em Jerusalém, 1961, feita para a The New Yorker. Este relato resultou no livro Eichmann em Jerusalém – Um Relato Sobre a Banalidade do Mal, publicado pela Companhia das Letras.
No processo de Eichmann, Hannah Arendt argumenta que o arquiteto da solução final não era um demônio nem um poço de maldade – o que a indispõe com os ativistas judeus, o ambiente acadêmico norte-americano e amigos –, mas alguém terrível e horrivelmente normal. Ele não era um monstro sanguinário, mas um funcionário medíocre, incapaz de refletir sobre seus atos ou de fugir aos clichês burocráticos. A banalidade do mal é a ameaça maior às sociedades democráticas e esse conceito pode ser utilizado para investigar questões sempre atuais, como a capacidade do Estado de transformar o exercício da violência homicida em mero cumprimento de metas e organogramas.
A facilidade da opinião pública em condenar o carrasco não é compartilhada pela pensadora, que mergulha nas sombras da barbárie para entender o oficial da SS e o fenômeno histórico nazismo. O mal não é radical, diz ela em certo momento do filme, só o bem é radical. O mal é a expressão de um pensamento horizontal como os trens na condução de judeus para Treblinka ou Sobibor.
A força do filme está na problemática de pensar a barbárie e a banalidade do mal no presente. O tom escuro da fotografia em muitas sequências lembra o terror de uma época que destruiu toda a esperança de estabilidade das fundações da civilização humana. Como é possível àqueles que sobreviveram ou escaparam se esquecerem daqueles tempos sombrios?
Este parece ser o dilema estético de Margarethe Von Trotta: não tornar Hannah Arendt uma celebridade e recusar um olhar piedoso sobre a “Shoah” ou “Catástrofe”. Como transformar em imagem o inimaginável? Eichmann é o mais comum dos homens e não é, como se pode pensar, uma espécie em extinção. O que torna a sua figura lamentavelmente atual.
Margarethe Von Trotta construiu um filme de ideias, ao colocar a questão: qual é o sentido da política? Essa pergunta resiste não só ao nazi-fascismo como exige da humanidade uma explicação racional – não demonizada dos agentes da SS, de Eichmann, de Himmler ou de Hitler – para a “Catástrofe”, essa fissura histórica europeia.
O filme atualiza questões como a torpeza na ação de partidos e políticos em relação à política. A Primavera Árabe, as manifestações na Turquia, a repulsa da corrupção nas ruas brasileiras em junho podem ser discutidos nesse contexto. A banalidade do mal comum aos líderes e burocratas que se acreditam salvacionistas mostra que os regimes totalitários têm matrizes populares. Hitler não era filho da burguesia, mas os empresários alemães – Claude Lanzzmann prova isso no documentário Shoah – receberam do Führer mão de obra escrava na instalação de suas fábrica nos arredores dos campos de concentração.
Margarethe Von Trotta aproxima o público de Hannah Arendt. Mesmo que o espectador sinta-se perdido com a ausência de referências de personalidades no filme como seu marido, o crítico marxista Heinrich Blutcher, isso não diminui o interesse para com o seu trabalho filosófico, abordando temas como a política, a autoridade, a educação, a condição laboral, a violência e a condição da mulher. Nestes tempos de vitalidade de grupos como o Anonymus e o Femen, instaurando novas contradições de prática política, Hannah Arendt é bem-vinda nas redes sociais. E ela, a quem uma vez foi perguntado sobre o sentido da política, respondeu: o sentido da política é a liberdade.


Leonardo Carmo é mestre em Educação Brasileira pela UFG e autor de O Cinema da Metafísica Bárbara e O Cinema do Feitiço Contra o Feiticeiro, PUC-UCG 2012

terça-feira, 21 de maio de 2013

the doorsways to the end

                                                       se ray manzerek morreu
                                                       as portas se abriram ou
                                                       se fecharam? elas se
                                                       racharam,
                                                       ora bolas e o ray
                                                       dos teclados segue
                                                       nu fim
 
 

sexta-feira, 26 de abril de 2013

jalapão


          jalapão

                                      
                             
              
                                                   se eu pudesse me chamaria joão
                                                    e pregaria sermão em alemão
                                                   ou  seria sem pernas e sem mãos
                                                           semeando no sertão
                                                           arroz carne e feijão
                                               na sombra do seu  doce de algodão
                                                se eu pudesse escreveria sobre
                                                       cinema de invenção
                                                    mas a vida é dor e poesia
                                                      não uma dissertação
                                              se ninguém soubesse onde é
                                                    eu fugiria para o jalapão
                                                    sem celular e televisão
                                          e sobreviveria da oração do vento
                                                  e amor do seu coração


                                          

sábado, 6 de abril de 2013


                     Riverão IV


                                           
                                



                                                                 o guarda-noite abre a minha porta
                                                                       com o seu pé de cabra
                                                                     me compra roupa de couro
                                                                     na boca dentes de dragão
                                                                        me seca a  careca na
                                                                        cabeleira de Lampião


                                                                  não estou sozinho no universo
                                                                         o infinito é meu padrinho
                                                                  me irmano caninana  no sertão
                                                                         o mundo está em guerra
                                                                   e glauber filma o fim do mundo cão
                                                                      o mundo mais zero no  zero do
                                                                               zero zero sete
                                                                       e o papa ao diabo pede perdão

domingo, 10 de março de 2013


    o fantasma da educação nas barricadas do cinema II



                     

                                                               Nina Ivanisin - Slovenka
 Especial para o Jornal Opção Cultural Edição 1966 de 10 de março a 16 de março de 2013
 Ensaio
  - http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/o-fantasma-da-educacao-nas-barricadas-do-cinema-parte-2

O cinema do Leste europeu exibe outras faces do socialismo soviético diferentes da promessa da realização do paraíso no cenário terrestre

Uma discussão forte na análise fílmica trata do problema da representação do “Shoah” no ci­nema.  Como representar o irrepresentável? Para Jean-Luc Godard,  em “A Vida É Bela” (1998), de Ro­berto Benigni, a mediocridade não vem da indignidade ética em fabular o horror nazista mas na falta de ficção do filme. Claude Lanzmann, di­retor de “Shoah”, 1985, diz que ao horror do extermínio nenhuma ima­gem pode ser adequada. Isso porque a imagem sempre banaliza os extremos e empresta ao crime uma face humana. Mesmo assim, o cinema do Leste europeu — e não só ele — tem trazido ao Ocidente outras faces do socialismo soviético diferentes da promessa da realização do paraíso no cenário terrestre. O cinema é uma fábrica de sonhos e estes podem revelar-se também uma usina de horrores. O objetivo desse texto, meramente informativo, é discutir como o cinema tem se ocupado da história como objeto.  Tenta­remos abordar o problema em alguns exemplos de filmes europeus.

Exibido sem estardalhaço pú­blico no Brasil,  “Slovenka” ou “Slo­­venia Girl”,  de Damjan Ko­zole, uma co-produção Eslovênia, Ale­manha, Sérvia e Croácia coloca em ação uma prostituta pelas ruas da capital Liubliana. Ao falarmos de prostituição estamos falando em política no sentido positivo do termo.
No enredo, Alexandra — Nina Ivanisin —  é uma jovem de Krsko, estudante de  Letras na Univer­sidade de Liubliana. Ela planeja ganhar o mundo. Trabalhando como prostituta, sua vida segue do jeito que queria, mas uma morte acidental a colocará em risco e a faz pensar no que vem fazendo para conquistar sua independência e sustento.
À interrogação sobre o que é analisar um filme na perspectiva histórica indico duas fontes:  Marc Ferro e Michèle Lagny. A discussão é: como materializar a história no filme sem reduzi-la ao espetáculo? Slovenka: garota síntese da Ale­manha, Croácia, Eslovênia e Sérvia. Depois da autodissolução da URSS o que restou senão o crime organizado e a prostituição?
Resposta: sobrou  a “Terra de Ninguém”, 2001, sobre a guerra entre servos e croatas dirigido por Danis Tanovic. “Slovenka” se situa entre este filme e o radical “Para Sempre Lylia”, de Lukas Moodys­son, 2002, história de um anjo en­vergonhado no interior da Estônia. O que amarra estes filmes ao “Taxi Blues”, 1990, de Pavel Lugin, e ao “Bárbara”, 2012, de Christian Pet­zold, é uma escritura fílmica da história na qual a estética soma-se à experiência histórica.
Michèle Lagny no ensaio “O Cinema Como Fonte da História”, pergunta:  “O cinema pode servir para desenvolver uma história crítica?” Não se pretende dar a resposta neste comentário, mas acrescentar que a história crítica inclui uma crítica da economia-política e, nesse caso, a matéria ou moeda de troca é o corpo de uma prostituta que procura se inserir no mercado global e nele sobreviver apelando para um caminho radical. Slovenka ambiciona melhorar sua vida, comprar uma apartamento, pagar as dívidas, e o faz percorrendo um caminho perigoso: ela é dona de seu corpo e de seus programas. Não são diferentes os caminhos buscados pelos personagens Bárbara e Stella ou Lyosha, o saxofonista de “Taxi Blues”.
Em “Slovenka”, um homem do alto escalão da União Europeia morre durante um encontro com a protagonista. Obeso, para sermos sutis, ele é a caricatura da Europa pós-muro de Berlim que esmaga as pequenas repúblicas do Leste europeu. A garota foge, mas é localizada por uma empresa de prostituição que não aceita autonomia no exercício da função. Hoje tudo está reduzido ao corporativismo e ao sindicalismo. Ou ela se submete às novas regras do mercado ou o preço será caro, como se vê no filme.
O socialismo é uma porta fechada para Slovenka. No filme há uma sequência pela espera do cliente italiano no quarto de hotel ao mesmo tempo que ele mente para a esposa sobre uma reunião de negócios. Alexandra mostra a calcinha. Tempo é dinheiro, ela diz. Tempo ou dinheiro não são problemas, responde ele.
Slovenka ou Alexandra tem a sua rotina. Nela, surge o ex-namorado que deseja separar-se da esposa e viver com a garota inocente que ela aparenta ser; o pai, de meia-idade, membro de uma banda rock — e aí o rock cumpre uma função libertária no filme — com um nome sintomático: Eletroshock. Esse mundo desolado, marcado por encontros frios, animalescos, destituídos de qualquer sentido para ela ou para os clientes atende a lógica dominante desde sempre: o que interessa é o prazer imediato. O gozo rápido. As notas de euro na carteira.
Slovenka pode ser uma garota do Leste europeu ou de uma metrópole, como São Paulo, ou de uma cidade média, como Goiânia. Em comum, os celulares que ela carrega na bolsa para controlar suas atividades. Para que tantos celulares?, pergunta o pai. Eles agora custam barato, responde ela. Ou, em outra cena, Alexandra comenta que todos existimos na solidão, cada um a seu modo. Os planos em que ela está sozinha no seu apartamento — e quando ela não está só? —, as mentiras para a família e para os amigos, revelam outra ambiguidade deste filme: não é mais possível ser verdadeiro, ser o que se é ou ser o que se deseja ser. O caminho mais rápido é o da venda do corpo. Mas, quem é a prostituta? Os dramas de Bárbara e Stella não são diferentes: a busca pela liberdade é paga em campos de reeducação socialista.
Há nesses filmes tensão, vigilância do aparelho estatal, suspeitas, insegurança, terror. Em “Slovenka”, toda a ação é permeada de sirenes de ambulância e carros de polícia.  Os jornais e a televisão informam que as autoridades estão empenhadas em localizar Slovenka. O que se tem é um fechamento de portas, um estreitamento da sociedade. As sirenes mencionam o que há de oculto no filme: Liubliana é dominada pelo crime, pela exploração, pela violência, Alexandra é só uma figurante deste cenário. A prostituta peregrinando pelas ruas não é diferente daqueles que na crise buscam trabalho como ela busca clientes. Bárbara e Stella e o boêmio moscovita são vigiados ostensivamente.
Slovenka é a nowhere girl. No  plano final — o que seria como encerrar uma história no sentido manuscrito — , ela fuma na porta do bar onde o pai faz um show de rock. A câmera enquadra-a, lentamente, aproximando de modo ameaçador e sutil sobre a personagem, até fechar, no seu corpo, em plano médio, ela cantando e fumando, a imagem congelada. Há muitas Slovenkas no mundo. E nenhum lugar há para elas. Michèle Lagny pergunta: “O que é que o cinema nos traz a mais que os outros documentos?” Talvez a história dos corpos de Slovenka, Bárbara e Stella ou Lyosha possam alimentar a discussão.

Leonardo Carmo é mestre em Educação Brasileira pela UFG

sábado, 9 de fevereiro de 2013


Análise/Amor

Amor doce horror

Leonardo Carmo - Especial para O POPULAR09 de fevereiro de 2013 (sábado)
Divulgação
FOTOA_H_2C_A-BKG3J_WEB
Em Amor , Haneke filma o mal-estar da civilização

O austríaco Michael Haneke, realizador de filmes polêmicos como A Professora de Piano (2001), Violência Gratuita (2007) e A Fita Branca (2009), é um cineasta com a câmera ligada no mal-estar da cultura e da civilização. Em Amor, de 2012 (em cartaz hoje na mostra O Amor, A Morte e As Paixões), ele utiliza a técnica cinematográfica para discutir os limites deste afeto na civilização.
Há em seus filmes uma genealogia da moral, aproximando-o filosoficamente de Nietzsche. Personagens e situações são exibidas no limiar da razão e do pessimismo. O microfascismo nas relações sociais entre senhores e camponeses, pais e filhos, educadores e educandos são alguns temas recorrentes de seus filmes. Para quem encara o cinema como diversão, Haneke não é uma boa pedida. O fascínio criado pelos seus filmes incomoda o olho e a consciência do espectador.
Nessa fita o objeto é o amor, sentimento na ordem do dia. O mais popular dos sentimentos e também o mais estranho com suas idas e vindas, voltas e reviravoltas na ficção ou na realidade. Se o amor conduz os amantes para novas paisagens do gozo, da cumplicidade e permite a construção de universos particulares, o cinema serve a Haneke para criar um itinerário desconhecido e imprevisível nascido da superfície do dia a dia, do senso comum.
Há centenas de filmes bons e ruins sobre o tema e é nesse terreno que esta película estabelece um corte radical ao se situar na contramão de narrativas como Love Story - Uma História de Amor, de Arthur Hiller, ou o fantasioso Ghost - Do Outro lado da Vida, de Jerry Zucker. Ao modo dos filósofos, Haneke aborda o assunto de modo belo e terrível. Mesmo filmes como o Romeu e Julieta, de Baz Lurhmann, ou Inquietos, de Gus Van Sant, traduzem a densidade do amor como encontro e fuga, solidariedade e solidão. A película de Haneke, indicada em quatro categorias do Oscar, é um antifilme neste quesito. O amor e o horror estabelecem um diálogo mais próximo de um desconforto que da promessa de uma felicidade cinematográfica.
Haneke narra a história de um casal professores de piano, aposentados, Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emannuelle Rivas), vivendo possivelmente o melhor momento de suas vidas: a velhice. Nesse sentido, o espectador é convidado a compor toda a trajetória da existência do casal sugerida naquilo que não se vê, mas pode-se imaginar. As personagens são mostradas no ponto mais alto de suas existências: concertos, passeios, conversas insólitas, aquilo que só é possível saborear com o avanço da idade. Esse afeto construído ao longo dos anos desmorona-se com o abalo de saúde de Anne. Haneke traça o roteiro da plenitude para a finitude.
A enfermidade é um monstro invencível. A ternura é truncada pelo cansaço e exasperação. A aura do amor é substituída pela coroa da morte. A potência amorosa é reduzida à infame degradação física e mental. O amor é um túmulo. Amor confronta o espectador não com a ficção na tela, mas com a possibilidade do sucedido ao casal estar ao alcance de qualquer um.
Anne parece entender a ruína dos acontecimentos que se avizinham. Sua recusa em ir para o hospital define o tom do filme. Ainda há nela a força do amor e ela se prepara para o embate. Georges se torna um fantasma. O filme corre no tempo da doença, expondo a linha tênue entre a saúde e a felicidade. O filme parece ele mesmo perder a respiração até que o coração pare de bater e o cérebro de funcionar. O apartamento torna-se uma câmara mortuária, as paredes apodrecem no mesmo definhamento do casal. O afeto se torna cinzas.
Todas as pequenas e indispensáveis bagatelas como as refeições, o lavar a louça, o turno das enfermeiras, os banhos tornam-se pesadelo. O amor, pássaro que voa, pesa, agora, como chumbo. O andamento musical do filme é acrescido de um elemento crucial: uma pomba. É a ave que dará a Georges a chave de interpretação de seus pesadelos e de como solucioná-los.
Michael Haneke desorganiza a casa dos afetos e joga com as virtudes da fidelidade e lealdade até o último dos minutos. Em uma metáfora possível, se o amor é um pássaro no filme, ele funciona como uma metáfora libertária. Se o amor é um voo, é preciso fazer uma escolha radical. Alguém com essa sorte corre o risco de receber a visita de uma pomba. E na hora certa, talvez, tenha o gesto de libertá-la.


Leonardo Carmo é mestre em Educação Brasileira pela UFG


Análise

Muito além da simplicidade

Lisa França - Especial para O POPULAR01 de dezembro de 2012 (sábado)

Livro é como um filho, fruto de uma paixão, de um desejo, no mínimo. Mas também pode ser a coroação de uma longa história de amor. É assim que vejo a obra O Cinema do Feitiço Contra o Feiticeiro, de Leonardo Carmo, que será lançada hoje em Goiânia na Escola Brasileira de Psicanálise.
O autor, poeta, músico e artista plástico, une suas paixões pelo cinema e ensino, com seu jeito próprio, elevando à distinção da arte o cinema comercial, misturando o entretenimento com a crítica revolucionária, como consegue fazer na vida trazendo pra escola seu pensamento fecundo e transgressor, educando adolescentes da escola pública paulista com a incoerência do artista que acredita no novo e na transmissão de valores da educação civilizatória conquistada a duras penas.
A contestação e a crítica estão no espírito do professor acostumado a conviver, ele mesmo, com a contradição desses dois Leos, não sem se arranharem e se machucarem o tempo todo dentro de si.
Por viver a contradição no seu trabalho cotidiano talvez não lhe tenha sido difícil arriscar-se em misturar a teoria elaborada do pensador alemão Walter Benjamin com o sucesso de bilheteria de Steven Spielberg,Jurassic Park, lançado em 1993. Em Benjamin, Leonardo encontra eco para seu fazer acadêmico, “não existe filme artístico ou comercial mas arte cinematográfica que pode qualitativamente tanto mais quanto menos expressar documentalmente a sociedade”.
O método de análise fílmica sugerido no livro incentiva os professores a arriscarem-se no uso do cinema comercial em sala de aula, mesmo sobre obras bem mais modestas em termos imagéticos e de conteúdo, porque o que Leonardo nos afirma é que cultural e artístico é o olhar, e não a obra em si, como foi escancarado por Marcel Duchamp com sua famosa A Fonte.
O educador pode aprender com o artista que tudo é material para ampliar o olhar, para convocar outros horizontes e estruturas. Se isto pode ser feito com um cartaz de propaganda, um rótulo de cereal, ou uma notícia de jornal, que dirá com o cinema, com toda sua sofisticação e complexidade de testemunho da história. Diz o autor: “Entrar em um cinema é vivenciar o tempo em que vivemos”. É a generosidade do olhar, a sua complacência, e também a sua cultura, que faz de um filme o que ele passa a ser.
Leonardo convoca seus pares a “tirarem o filme do gueto do entretenimento e instrumentalizar a diversão como meio de transmissão e de elucidação cultural de contextos sociais e globais definidos”, o que faz com muita presteza, analisando o filme em questão. Seu argumento encontra apoio ainda em Benjamin, que afirmava que todo documento da cultura é também um documento da barbárie.
Neste sentido, o filme escolhido de Spielberg explicita a questão. O autor ilustra como a técnica bem sucedida da obra cinematográfica de ficção científica, produzida dentro do esquema hollywoodiano da indústria cultural, estabelece um diálogo crítico com esta mesma sociedade.
O filme serve-lhe para ilustrar as verdades e denúncias que podem ser reveladas também pelo simulacro, pelo arremedo, pela falsificação própria do cinema de entretenimento e do cinema contemporâneo realizado a partir da computação gráfica. No artifício está gravada a dualidade do homem com a natureza, a sua ganância destrutiva, e a crítica implícita à loucura da ciência atual na sua ânsia em reduzir qualquer possibilidade de transcendência em mercadoria. Uma técnica que não está a serviço do bem-estar coletivo ou, para utilizar as palavras de Benjamin, como “uma chave para a felicidade”.
Fazer cinema, já vivenciaram muitos cineastas, é um pouco brincar de Deus. É criar vida, personagens, histórias, paisagens e, no caso específico de Jurassic Park, há ainda o exercício metafórico de denunciar o brincar de Deus não no plano simbólico, mas no real. A obra denuncia os riscos da união do capitalismo à ciência, e os perigos da manipulação genética e da biologia. Entre brincar de Deus e o querer sê-lo está em questão a vaidade humana e seu gosto pela destruição. Mas é também entretenimento.
O filme, como todas as produções do gênero de terror e violência, nos confronta com nosso lado obscuro e perverso, nosso fascínio pela morte e pelo sangue, pelo perigo e pela vingança. Os filmes do gênero, como apontado na produção Dogville, de Lars Von Trears, soca o estômago do espectador revelando-lhe, ao final, não a violência do filme, mas a de cada espectador ali sentado, torcendo pela morte dos inimigos e pela vingança implacável. O valor de entretenimento de Jurassic Park está também presente no prazer do espectador pela violência, por entranhas destroçadas, sangue derramado e canibalismo. Leonardo nos conta que o filme foi o grande recordista em vendas de cópias VHS (a tecnologia disponível na época) no Brasil.
Com o livro, o autor almeja contribuir com seus pares, professores, mostrando que o cinema comercial, de sucesso e rentável, também pode ser objeto de profunda reflexão sobre o testemunho da história, e da construção cinematográfica, o que faz didaticamente analisando o filme sequência a sequência.
Na leitura do seu relato de Jurassic Park, a gente revive-o de outra forma, com o prazer literário da sua escrita. Ele consegue reavivar todo o suspense mesmo para quem já viu e reviu diversas vezes o filme. Sua descrição das cenas transforma as sequências de Spielberg em uma obra poética de grande significado: “a força dos dinossauros é a de um trovão no interior da terra, talvez algo como a explosão surgida das experiências atômicas francesas na Oceania, o som do dinossauro é um som gutural da mãe natureza”.
O livro foi originalmente uma dissertação de mestrado na Faculdade de Educação da UFG, o que nos remete à outra alegoria, que é o que pode haver de monstruoso na construção de um trabalho acadêmico submetido a normas rígidas e a julgamento. Por isto a palavra acadêmica escolhida é defesa. Defesa dos ataques que deverão necessariamente vir da banca examinadora. Este estágio, como previu a mãe do autor, a quem é dedicado o trabalho, ele superou-o bem, livrando-se da assepsia acadêmica com sua linguagem poética e emocional. Emoção que nos arrebata desde o prefácio na narração de seus diálogos com a mãe que acompanhava o trabalho, presença que lhe trouxe, além do calor, sábias incursões: “Os monstros do cinema devoram você ou você devora os monstros do cinema”, teria dito Tarcila.

Lisa França é psicanalista, diretora de documentários e crítica de cinema