Livro é como um filho, fruto de uma paixão, de um desejo, no mínimo. Mas também pode ser a coroação de uma longa história de amor. É assim que vejo a obra O Cinema do Feitiço Contra o Feiticeiro, de Leonardo Carmo, que será lançada hoje em Goiânia na Escola Brasileira de Psicanálise.
O autor, poeta, músico e artista plástico, une suas paixões pelo cinema e ensino, com seu jeito próprio, elevando à distinção da arte o cinema comercial, misturando o entretenimento com a crítica revolucionária, como consegue fazer na vida trazendo pra escola seu pensamento fecundo e transgressor, educando adolescentes da escola pública paulista com a incoerência do artista que acredita no novo e na transmissão de valores da educação civilizatória conquistada a duras penas.
A contestação e a crítica estão no espírito do professor acostumado a conviver, ele mesmo, com a contradição desses dois Leos, não sem se arranharem e se machucarem o tempo todo dentro de si.
Por viver a contradição no seu trabalho cotidiano talvez não lhe tenha sido difícil arriscar-se em misturar a teoria elaborada do pensador alemão Walter Benjamin com o sucesso de bilheteria de Steven Spielberg,Jurassic Park, lançado em 1993. Em Benjamin, Leonardo encontra eco para seu fazer acadêmico, “não existe filme artístico ou comercial mas arte cinematográfica que pode qualitativamente tanto mais quanto menos expressar documentalmente a sociedade”.
O método de análise fílmica sugerido no livro incentiva os professores a arriscarem-se no uso do cinema comercial em sala de aula, mesmo sobre obras bem mais modestas em termos imagéticos e de conteúdo, porque o que Leonardo nos afirma é que cultural e artístico é o olhar, e não a obra em si, como foi escancarado por Marcel Duchamp com sua famosa A Fonte.
O educador pode aprender com o artista que tudo é material para ampliar o olhar, para convocar outros horizontes e estruturas. Se isto pode ser feito com um cartaz de propaganda, um rótulo de cereal, ou uma notícia de jornal, que dirá com o cinema, com toda sua sofisticação e complexidade de testemunho da história. Diz o autor: “Entrar em um cinema é vivenciar o tempo em que vivemos”. É a generosidade do olhar, a sua complacência, e também a sua cultura, que faz de um filme o que ele passa a ser.
Leonardo convoca seus pares a “tirarem o filme do gueto do entretenimento e instrumentalizar a diversão como meio de transmissão e de elucidação cultural de contextos sociais e globais definidos”, o que faz com muita presteza, analisando o filme em questão. Seu argumento encontra apoio ainda em Benjamin, que afirmava que todo documento da cultura é também um documento da barbárie.
Neste sentido, o filme escolhido de Spielberg explicita a questão. O autor ilustra como a técnica bem sucedida da obra cinematográfica de ficção científica, produzida dentro do esquema hollywoodiano da indústria cultural, estabelece um diálogo crítico com esta mesma sociedade.
O filme serve-lhe para ilustrar as verdades e denúncias que podem ser reveladas também pelo simulacro, pelo arremedo, pela falsificação própria do cinema de entretenimento e do cinema contemporâneo realizado a partir da computação gráfica. No artifício está gravada a dualidade do homem com a natureza, a sua ganância destrutiva, e a crítica implícita à loucura da ciência atual na sua ânsia em reduzir qualquer possibilidade de transcendência em mercadoria. Uma técnica que não está a serviço do bem-estar coletivo ou, para utilizar as palavras de Benjamin, como “uma chave para a felicidade”.
Fazer cinema, já vivenciaram muitos cineastas, é um pouco brincar de Deus. É criar vida, personagens, histórias, paisagens e, no caso específico de Jurassic Park, há ainda o exercício metafórico de denunciar o brincar de Deus não no plano simbólico, mas no real. A obra denuncia os riscos da união do capitalismo à ciência, e os perigos da manipulação genética e da biologia. Entre brincar de Deus e o querer sê-lo está em questão a vaidade humana e seu gosto pela destruição. Mas é também entretenimento.
O filme, como todas as produções do gênero de terror e violência, nos confronta com nosso lado obscuro e perverso, nosso fascínio pela morte e pelo sangue, pelo perigo e pela vingança. Os filmes do gênero, como apontado na produção Dogville, de Lars Von Trears, soca o estômago do espectador revelando-lhe, ao final, não a violência do filme, mas a de cada espectador ali sentado, torcendo pela morte dos inimigos e pela vingança implacável. O valor de entretenimento de Jurassic Park está também presente no prazer do espectador pela violência, por entranhas destroçadas, sangue derramado e canibalismo. Leonardo nos conta que o filme foi o grande recordista em vendas de cópias VHS (a tecnologia disponível na época) no Brasil.
Com o livro, o autor almeja contribuir com seus pares, professores, mostrando que o cinema comercial, de sucesso e rentável, também pode ser objeto de profunda reflexão sobre o testemunho da história, e da construção cinematográfica, o que faz didaticamente analisando o filme sequência a sequência.
Na leitura do seu relato de Jurassic Park, a gente revive-o de outra forma, com o prazer literário da sua escrita. Ele consegue reavivar todo o suspense mesmo para quem já viu e reviu diversas vezes o filme. Sua descrição das cenas transforma as sequências de Spielberg em uma obra poética de grande significado: “a força dos dinossauros é a de um trovão no interior da terra, talvez algo como a explosão surgida das experiências atômicas francesas na Oceania, o som do dinossauro é um som gutural da mãe natureza”.
O livro foi originalmente uma dissertação de mestrado na Faculdade de Educação da UFG, o que nos remete à outra alegoria, que é o que pode haver de monstruoso na construção de um trabalho acadêmico submetido a normas rígidas e a julgamento. Por isto a palavra acadêmica escolhida é defesa. Defesa dos ataques que deverão necessariamente vir da banca examinadora. Este estágio, como previu a mãe do autor, a quem é dedicado o trabalho, ele superou-o bem, livrando-se da assepsia acadêmica com sua linguagem poética e emocional. Emoção que nos arrebata desde o prefácio na narração de seus diálogos com a mãe que acompanhava o trabalho, presença que lhe trouxe, além do calor, sábias incursões: “Os monstros do cinema devoram você ou você devora os monstros do cinema”, teria dito Tarcila.

Lisa França é psicanalista, diretora de documentários e crítica de cinema