Divulgação
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Em Amor , Haneke filma o mal-estar da civilização

O austríaco Michael Haneke, realizador de filmes polêmicos como A Professora de Piano (2001), Violência Gratuita (2007) e A Fita Branca (2009), é um cineasta com a câmera ligada no mal-estar da cultura e da civilização. Em Amor, de 2012 (em cartaz hoje na mostra O Amor, A Morte e As Paixões), ele utiliza a técnica cinematográfica para discutir os limites deste afeto na civilização.
Há em seus filmes uma genealogia da moral, aproximando-o filosoficamente de Nietzsche. Personagens e situações são exibidas no limiar da razão e do pessimismo. O microfascismo nas relações sociais entre senhores e camponeses, pais e filhos, educadores e educandos são alguns temas recorrentes de seus filmes. Para quem encara o cinema como diversão, Haneke não é uma boa pedida. O fascínio criado pelos seus filmes incomoda o olho e a consciência do espectador.
Nessa fita o objeto é o amor, sentimento na ordem do dia. O mais popular dos sentimentos e também o mais estranho com suas idas e vindas, voltas e reviravoltas na ficção ou na realidade. Se o amor conduz os amantes para novas paisagens do gozo, da cumplicidade e permite a construção de universos particulares, o cinema serve a Haneke para criar um itinerário desconhecido e imprevisível nascido da superfície do dia a dia, do senso comum.
Há centenas de filmes bons e ruins sobre o tema e é nesse terreno que esta película estabelece um corte radical ao se situar na contramão de narrativas como Love Story - Uma História de Amor, de Arthur Hiller, ou o fantasioso Ghost - Do Outro lado da Vida, de Jerry Zucker. Ao modo dos filósofos, Haneke aborda o assunto de modo belo e terrível. Mesmo filmes como o Romeu e Julieta, de Baz Lurhmann, ou Inquietos, de Gus Van Sant, traduzem a densidade do amor como encontro e fuga, solidariedade e solidão. A película de Haneke, indicada em quatro categorias do Oscar, é um antifilme neste quesito. O amor e o horror estabelecem um diálogo mais próximo de um desconforto que da promessa de uma felicidade cinematográfica.
Haneke narra a história de um casal professores de piano, aposentados, Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emannuelle Rivas), vivendo possivelmente o melhor momento de suas vidas: a velhice. Nesse sentido, o espectador é convidado a compor toda a trajetória da existência do casal sugerida naquilo que não se vê, mas pode-se imaginar. As personagens são mostradas no ponto mais alto de suas existências: concertos, passeios, conversas insólitas, aquilo que só é possível saborear com o avanço da idade. Esse afeto construído ao longo dos anos desmorona-se com o abalo de saúde de Anne. Haneke traça o roteiro da plenitude para a finitude.
A enfermidade é um monstro invencível. A ternura é truncada pelo cansaço e exasperação. A aura do amor é substituída pela coroa da morte. A potência amorosa é reduzida à infame degradação física e mental. O amor é um túmulo. Amor confronta o espectador não com a ficção na tela, mas com a possibilidade do sucedido ao casal estar ao alcance de qualquer um.
Anne parece entender a ruína dos acontecimentos que se avizinham. Sua recusa em ir para o hospital define o tom do filme. Ainda há nela a força do amor e ela se prepara para o embate. Georges se torna um fantasma. O filme corre no tempo da doença, expondo a linha tênue entre a saúde e a felicidade. O filme parece ele mesmo perder a respiração até que o coração pare de bater e o cérebro de funcionar. O apartamento torna-se uma câmara mortuária, as paredes apodrecem no mesmo definhamento do casal. O afeto se torna cinzas.
Todas as pequenas e indispensáveis bagatelas como as refeições, o lavar a louça, o turno das enfermeiras, os banhos tornam-se pesadelo. O amor, pássaro que voa, pesa, agora, como chumbo. O andamento musical do filme é acrescido de um elemento crucial: uma pomba. É a ave que dará a Georges a chave de interpretação de seus pesadelos e de como solucioná-los.
Michael Haneke desorganiza a casa dos afetos e joga com as virtudes da fidelidade e lealdade até o último dos minutos. Em uma metáfora possível, se o amor é um pássaro no filme, ele funciona como uma metáfora libertária. Se o amor é um voo, é preciso fazer uma escolha radical. Alguém com essa sorte corre o risco de receber a visita de uma pomba. E na hora certa, talvez, tenha o gesto de libertá-la.


Leonardo Carmo é mestre em Educação Brasileira pela UFG