A história na época das técnicas de reprodução digital
A introdução da máquina causou
mudanças no modo como as pessoas viviam. Toda uma infraestrutura
tecnológica começou a crescer ao redor delas. Isso fez com que alguns
historiadores e críticos de arte vissem que não eram só os tempos que
estavam mudando em decorrência da tecnologia, mas a nossa própria
consciência

Walter Benjamin: denúncia contra o falso universalismo do método da história cultural / Wikipédia Commons
Especial para o Jornal Opção
A divulgação do trailer de “Jurassic
World: O Mundo dos Dinossauros” dando seguimento à milionária franquia
do empreendimento de John Hammond, coloca entre outras questões: o
crítico em sua tarefa pode sentir uma emoção estética da descoberta?
Charles Baudelaire definia a poesia como aquilo que há de mais real,
isto é, como aquilo que só é cabalmente verdadeiro em outra dimensão.
Com isso quero dizer que a análise de produções de dimensões maciças
como é o caso desse filme requer outro instrumental para além do
artístico e do estético. Esse instrumental está na obra do filósofo
Walter Benjamin em sua teoria sobre a obra de arte na época de suas
técnicas de reprodução ou de maneira mais direta na obra de arte
tecnicamente reproduzida. Podemos deslocar para a análise fílmica a
polêmica de Benjamin contra a “hidra da estética escolar com suas sete
cabeças”: criatividade, empatia, intemporalidade, recriação, vivência
compartilhada, ilusão e gozo artístico. A isso Benjamin denuncia como o
falso universalismo do método da história cultural. Essas categorias
devem ser substituídas por outras mais adequadas à reprodução da obra de
arte. Propaganda, publicidade, difusão maciça, politização da arte —
que não é o mesmo que partidarização da arte, oposta portanto à estética
fascista — e essa politização ganha maior ou menor eficácia exatamente
nas atuais condições de suas técnicas de produção. No caso, nos
encontramos na época da reprodução da obra de arte digitalizada. O mundo
jurássico é um encontro fantasmagórico entre o real e o virtual, uma
aventura cinematográfica mais audaciosa que a insossa série “Matrix”,
falsa promessa de emancipação que no entanto fez a cabeça de muitos
intelectuais como um ensaio da visita à alegórica caverna de Platão. A
arte digitalizada é ainda vista como suspeita de ser “autentica e
originalmente” obra de arte. Mesmo no meio ambiente acadêmico — que
aplaude as mobilizações políticas via Facebook, por exemplo, há poucos
interessados em investigar as relações entre arte e tecnologia.
Uma delas é Margot Lovejoy, professora
do programa de Intermídia da State University of New York. Ela rebate as
críticas de exaustão da arte hoje e demonstra como em alguns dos mais
radicais artistas norte-americanos estão usando tecnologias como vídeos e
computadores para criar uma arte bela, expressiva e crítica de nosso
tempo, numa convergência cada vez maior entre a arte e a ciência. Em
suas pesquisas Margot Lovejoy pergunta sobre qual é o papel da arte hoje
e quanto ela mudou, e felizmente continua a mudar, com as
transformações tecnológicas, que modificaram a ideia das pessoas sobre
arte. Hoje mal tempos tempo para assimilar as mudanças, que estão
ocorrendo cada vez mais rápidas. A fase atual é totalmente diferente da
Renascença. A introdução da máquina causou mudanças no modo como as
pessoas viviam, e elas estão cada vez mais habitando as cidades. Por
isso, toda uma infraestrutura tecnológica começou a crescer ao redor
delas. Isso fez com que alguns historiadores e críticos de arte vissem
que não eram só os tempos que estava mudando em decorrência da
tecnologia, mas a nossa própria consciência.

Steven Spielberg: materialização da expressão — arte cinematográfica — criada por Walter Benjamin / Artchive
Margot Lovejoy, afirma que Benjamin
virou uma espécie de palavra-chave para toda essa discussão porque ele
ainda é um dos poucos escritores que realmente sabem como tratar de
questões culturais. Os historiadores de arte normalmente abordam a arte
de modo a amputarem de seu tempo e de lugar. A famosa intemporalidade.
Para ela, além disso, Benjamin percebia nas discussões sobre arte uma
supressão da cultura popular, um foco limitado, um desprezo mesmo
daquilo que era chamado de arte comercial. Arte cinematográfica é o
termo que Benjamin utiliza superando a divisão entre autenticidade e
originalidade versus comercialismo. A discussão não é o cinema como arte
mas, a técnica cinematográfica. Nos termos de Detlev Schöttker,
professor da Universidade Técnica de Dresden, Benjamin empreendeu uma
revisão crítica da estética filosófica porque o seu interesse não era
primordialmente a influência do cinema na arte e na cultura, ou suas
características estéticas, mas a mudança que as imagens fabricadas
tecnicamente provocavam na percepção da arte. Nesse sentido,
parafraseando o próprio Benjamin nas questões literárias, pode-se dizer
que “o crítico é o estrategista da luta cinematográfica”. Uma dessas
estratégias seria nos dizeres do filósofo “orientar a realidade em
função das massas e as massas em função da realidade é um processo de
imenso alcance, tanto para o pensamento como para a intuição”. Isso nos
devolve à questão se a tarefa do crítico pode envolver o sentimento
estético da descoberta. Se a esse crítico interessa, antes de tudo, as
novas formas de experiência da modernidade, perceptíveis no cinema e se
aceitarmos que com o ensaio de Benjamin surgiu a tese de que, graças à
reprodução, a obra de arte teria recebido um novo status, abalando assim
os fundamentos da estética tradicional, perceberemos a mudança da
questão artística para os aspectos sociais, filosóficos, científicos e
históricos para a análise estética da obra de arte na época de suas
técnicas de reprodução digital. Ou, para o desespero dos grupelhos
políticos atrelados aos aparelhos de Estado, a militância calçada com
recursos públicos, o que Benjamin efetivamente propõe é uma análise
materialista da obra de arte e dessa perspectiva um cineasta ou produtor
como Steven Spielberg, não é um mistificador, mas um destruidor das
fantasias materialistas.

“O Mundo Jurássico” coloca Steven Spielberg como um dos cineastas mais radicais e políticos do ponto de vista do cinema experimental. Essa afirmação deve causar calafrios e enxaqueca nos pesquisadores que transformam o cinema experimental em uma vivência e experiência aurática. O fato é que Spielberg vira a página da dicotomia cinema arte, o cinema autêntico contra o cinema comercial, reificado, manipulador das emoções e consciência do espectador. Spielberg é a materialização da expressão — arte cinematográfica — de Walter Benjamin. Claro, há filmes e entre eles os filmes grotescos dos Estados Unidos e os filmes da Disney. E há aqueles que colocam o homem próximo da fantasia materialista, o sonho obsessivo do homem em dominar a natureza, em fazer dela um lugar higiênico, um habitat de onde o medo foi expulso. Os filmes de terror — cósmicos ou geológicos — cumprem uma função terapêutica da sensação do homem superar os seus temores básicos e sentir confortável em um mundo, como se fosse possível responder de onde viemos, quem somos, para onde vamos. A clonagem dos dinossauros pode ser pensada como um ponto culminante da doença humana em não aceitar suas limitações básicas de medo e insegurança diante do desconhecido e uma crença ingênua que a ciência pode nos dar todas as respostas e livrar o homem de sua insignificância. Penso Steven Spielberg como um desmistificador das alucinações criadas por uma mentalidade experimentalista a dominar em grande parte a ciência como é praticada hoje. Se essa afirmação puder ser considerada, muitos filmes de ficção científica atuam como um antídoto contra a fantasmagoria que transforma a realidade em Coca-Cola. “O Mundo Jurássico” — os poucos minutos do trailer exibem um mundo completamente subordinado à técnica: o mundo opera segundo o sonho humano da eficiência e da ordem dados, supostamente, pela matemática. A visita ao mundo jurássico apesar de sua eficiência é uma viagem ao centro do obsessivo terror em dominar a natureza, sonho mítico do astuto Ulisses, o primeiro herói burguês a realizar tal façanha na passagem das sereias. A razão mítica quer agora fazer crer que a ciência pode reaproximar o homem da natureza e nesse sentido se há em algum canto da terra a argila primeva petrificada, os portões do mundo jurássico estão abrindo para o reencontro turístico do homem com Adão e Eva. A ciência é uma máquina produtora de fantasmagorias tecnológicas e o cinema é uma mídia privilegiada na qual a razão e o sonho se encontram em um mesmo território.
O mundo jurássico se configura como uma
narrativa audiovisual da modernidade, melhor, uma experiência do horror
da modernidade na qual a pré-história é transformada em mercadoria. A
fantasia com ares de cientificidade na clonagem dos dinossauros remete à
lógica da produção de mercadorias: tudo o que pode ser duplicado gera
lucros. O lucro como choque, o choque como lucro, parece ser a metáfora
desse filme, convite orgiástico às mais remotas formas de vida nas
origens do nosso misterioso planeta. John Hammond é um discípulo do
Fausto. Para ele seria natural conduzir dinossauros pela coleira como se
faziam com as tartarugas na Paris de Baudelaire. A biotecnologia em
busca da mercadoria perdida. O reencontro do tempo perdido não em termos
individuais, mas, no delírio coletivo, a pré-história como estoque
genético, material a ser colocado em produção, circulação e consumo em
uma fantasia inimaginável ou só possível de ser pensada com o braço
utilitário da ciência e sua materialização pela técnica cinematográfica.
Um dos paradoxos do filme é que sua estrutura narrativa, absolutamente
comercial, de enorme valor expositivo, nega no real, a ciência como uma
narrativa coroada de êxitos. Em termos dogmáticos — isto é, para o senso
comum — a ciência seria uma narrativa irrepreensível. Ciência e sucesso
seriam sinônimos do triunfo da razão humana. Nesse ponto, curiosamente,
na busca de novos paradigmas para a análise da arte cinematográfica,
importante contribuição vem de um dos mais importantes historiadores do
século: Eric Hobsbawm. Em sua obra “Era dos Extremos — O Breve Século XX
1914-1991” — há um capítulo, “Feiticeiros e aprendizes: as ciências
naturais”, o conceituado historiador britânico afirma que nenhum período
da história foi penetrado pelas ciências naturais nem mais dependente
delas que o século 20. Contudo, nenhum período, desde a retratação de
Galileu, se sentiu menos a vontade com elas. Este é o paradoxo — afirma
Hobsbawm — que tem de enfrentar o historiador. Os herdeiros de Ulisses
nada mais são que aprendizes de feiticeiros. Por curioso que seja, este
capítulo do livro oferece elementos para uma análise fílmica do “Mundo
dos Dinossauros”. O exame de Hobsbawm colide com as observações da
historiadora de arte Camille Paglia em sua obra “Imagens Cintilantes —
Uma Viagem Através da Arte Desde o Egito a Star Wars”. Pensando a obra
de arte na obra de suas técnicas de reprodução digital, a controversa
professora de Humanidades e Estudos Midiáticos na University of the Arts
da Filadélfia, elege George Lucas como o maior artista de nosso tempo.
Para ela, ninguém reduziu a distância que separava a arte da tecnologia
com maior êxito do que George Lucas. Camille Paglia parece dizer que os
críticos de arte contemporâneos precisam pensar com a cabeça de Leonardo
da Vinci. Ao abrir mão da hidra da estética escolar, o crítico sentirá a
emoção da descoberta revelada na materialidade do objeto — no caso — o
filme — novas formas de pensar e sentir o mundo. A arte história na
época da arte digitalizada mostra que as fronteiras entre a modernidade e
o arcaico são tênues. As novas maravilhas mostradas no cinema não
omitem o seu aspecto mais aterrorizador. Os dinossauros nessa
perspectiva são mais destruidores que as bombas sobre Hiroshima e
Nagasaki. A história, na época da obra de arte e suas técnicas de
reprodução digital parece evocar a sentença de Franz Kafka: “Há
esperança para todos, menos para nós”.
Leonardo Carmo é autor do livro “O Cinema do Feitiço Contra o Feiticeiro — Cinema de Massa e Crítica da Sociedade”.
via Revista Bula