quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Fantasma do Amor

A filmografia de Gus Van Sant  segue em pelo menos alguns de seus filmes aquilo que poderemos chamar de narrativa dos desgarrados.

Annabel e Enoch: pássaros enamorados

   
Personagens " outsiders " como os que aparecem em "Drugstore Cowboy", 1989, " Garotos de Programa", 1991, " Até as Garotas Ficam Tristes", 1993 e " Elefante", 2003 e " Paranoid Park", de 2007, exibem seres deste outro mundo que mora ao nosso lado no cotidiano e que parecem mais reais e ganham maior visibilidade se mostrados no cinema.
   Penso que num certo sentido estes filmes - para não mencionar outros do diretor - tem a mesma historia. Seres desajustados o suficiente para não aceitar o "establishment", viajantes em busca do gozo e do amor,  das drogas e dos paraísos artificiais mas quase sempre impossibilitados de viveram toda a potência de seu afeto.
   Com  " Restless - Inquietos ", 2012 Gus Van Sant torna mais delicada essa galeria gente insólita com Enoch (Henry Hopper) um adolescente que não se conforma com a perda dos pais num acidentel de automóvel e Annabel ( Mia Wasikowska) uma jovem que tem um tumor no cérebro e data certa para morrer. Há quem diga que o filme remeta ao " Love Story - Uma História de Amor", 1970,mas, aqui a coisa é pior.
   Eles se conhecem num cemitério. E aí está o primeiro gesto insólito de Gus Van Sant. O amor nasce da morte, da contemplação das pedras de túmulos frios, o amor vem da região onde o sol nunca brilha ou nasce ou nem mesmo existe.  Não bastasse a aura de Enoch e Annabel, o diretor nos envolve ainda com o fantasma de  kamikaze Hiroshi (Ryo Kase) o único amigo do garoto.
   Começar um filme com " Two of Us", The Beatles e inserir imagens de Hiroshima conferem ao filme doçura e horror. É a balada de Lennon-Mccartney o primeiro petardo a ser atirado no ouvidos do espectador que assim é mergulhado numa viagem sem volta. Mais ou menos como diz o cartaz do filme: voce vive para que?
Vivemos para duas coisas: para amar  e morrer. Nesse entreato, a frivolidade que chamamos existência. Amorrer. Morramar.O tato com o qual é tratada a narrativa de Enoch e Annabel educa o senso, os sentidos, os sentimentos.  Fugindo do estereótipo da jovem em fase terminal e do romantismo barato, Gus Van Sant outra vez coloca o seu cinema a serviço de pensarmos as tragédias e dores cotidianas, pequenas catástrofes que felizmente escapam aos olhos dos mídias.
   A construção do afeto entre Enoch e Annabel é mediada pelo fantasma Hiroshi, uma espécie de barqueiro da morte, elo entre a sobrevivência de Enoch e a passagem de Annabel. Mas ainda aqui Gus Van Sant nos acorda de possíveis identificações entre o espectador e o filme. Enoch e Annabel como personagens reencenam sua fatalidade com a fina ironia daqueles que pensam poder escapar do que chamamos mundo dos vivos.
  O primeiro encontro - numa cerimonia funerária -. os passeios pelo cemitério, a paixão de Annabel pelo naturalismo de Charles Darwin, o apelido - Passarinho - que ela coloca no amante - o desenho feito no chão com o giz juntando os dois pássaros por toda a eternidade, desdramatiza qualquer emoção piegas que a estória por si só inspira.
   A morte não é vivida por Annabel de modo pesado. É algo que simplesmente irá acontecer. Assim, a cada sessão de transfusão de sangue, a cada exame que constata os limites da medicina, são vividos pelos dois como um acidente no percurso, o mesmo acidente que os colocou frente a frente ao se conhecerem.

Henry Hopper (Enoch) e Ryo Kase (Hiroshi)
vivos e mortos sem descanso
  
   Deliciosamente ironico, sutilmente bem humorado, essas duas personagens podem marcar o modelo romântico dessa nova década que se inicia. Ao representar seus próprios destinos na película, Gus Van Sant parece dizer no filme que não há outro caminho a não ser o da felicidade, mesmo quando ela nos apresenta temporária, curta, finita. O único modo de viver é amar. O amor é o que diminui nosso temor diante da morte.   
    Toda a dedicação de Annabel com Charles Darwin, seu esforço em classificar balas e doces para o seu próprio velório, a visita que ela e Enoch fazem ao necrotério do hospital, nada disso é vivido ou mostrado com morbidez, desespero. Enoch e Annabel são melancólicos, não abrem mão disso, mas, é essa melancolia que os alimenta a viver intensamente todos os momentos prosaicos de uma consulta médica, de um Dia das Bruxas, de atirar pedras nos trens, de desenhar pássaros e escaravelhos sob as árvores do cemitérios.
   Talvez se possa dizer que o filme recupere a obra de Roland Barthes - Fragmentos do Discurso Amoroso -, não no sentido de retomar o projeto literário mas no permanecer da pergunta: onde e quando termina o amor? O que é o amor?  Por que quando o encontramos ele chega inesperadamente ao fim?
   Hiroshi o kamikaze que não pode entregar a carta para a sua namorada talvez nos dê a resposta. Ele que morreu sem dizer adeus para a sua amada, é o fantasma que protege o afeto, o fantasma do amor e talvez o amor seja isso, uma sombra que acolhe a existência e um sol que testemunha a nossa morte.


Leonardo Carmo

domingo, 27 de novembro de 2011

Imaginação, Cinema e Contradições II

Luiz Rosemberg Filho, cineasta brasileiro cuja obra faz uma crítica ao que poderíamos chamar uma maneira infame de fazer Cinema. 
Nesta entrevista uma pequena mostra de seu pensamento político e estético. No final do bate-papo podemos conferir o curta-metragem TRABALHO, inventiva crítica ao DAS KAPITAL.

Luiz Rosemberg Filho - colagem


Leonardo Carmo – o senhor dirigiu a atriz Adriana Prieto (1950-974) no longa metragem Balada da Página 3, em 1968.  Seu cinema é tecido de atrizes imbatíveis: Katia Grumberg, Ana Maria Miranda, Analu Prestes, Adriana de Figueiredo. Que atriz o encanta hoje no cinema brasileiro?

Luiz Rosemberg Filho – Acho que antes tínhamos mais opções sólidas pois as boas atrizes vinham do Teatro. Não eram vedetinhas de novelas e sim verdadeiramente atrizes. Eu não consegui mais ver no nosso cinema frescura ou frescor criativo de uma Isabel Ribeiro, Glauce Rocha, Dina Sfat. As de hoje, parecem todas marombeiras da “ Malhação”. Atriz ou ator virou isso: marombeiros de monstruosidades midiáticas do capitalismo. Sistema econômico que não suporta o encantamento e a magia. Mas...amos acreditar numa novíssima geração como a talentosa Barbara Vida, Mariana Dias...

LC – Lutero Luiz em O Santo e a Vedete , como Doutor Chupadinho e Wilson Grey no Crônica de um Industrial e Wilson Grey como de La Cruz  - ambos, premonição de políticos identificados com os  dos Governos Luis Inácio e Dilma Roussef , mas, não só com estes – parecem levar ao extremo a grotesco das personagens de Terra em Transe. O senhor poderia falar do seu processo de direção; como ensaia os atores? Que instruções de interpretação foram dadas a Renato Coutinho, o empresário do Crônica?

LRF – Sempre achei a direção de atores quase um casamento entre almas arteiras. Cada ator tem o seu EU e é preciso desvendá-lo para melhor servir ao Personagem. E o que sustenta uma boa interpretação é um estado doce de encantamento, de procura, de verdade – nem sempre muito claro na dinâmica do entendimento. Ousaria dizer que o trabalho  de direção é uma espécie e gozo fantástico, mais muito subjetivo.Às vezes passa, às vezes não. É como a música para o compositor que pode ser um acontecimento definitivo como as músicas do Johan Sebastian Bach, ou ficar na “ Eguinha Pocotó”. E,  em não sendo de modo algum teórico como  o Eisensein ou o Brecht, diagnosticar um processo tão subjetivo que passa pelo saber, pela sensibilidade, pelo encantamento, pelo comprometimento e pelo medo nem sempre dá para explicar por palavras. Cada ator/atriz tem  múltiplos processos de abordagem. O Renato Coutinho por exemplo queria alimentar-se de silêncio e medos. Queria chegar no seu personagem pela dor da perda e da velhice eminente. Conversávamos muito,mas nem sempre pela sua personagem mas por múltiplos caminhos possíveis.  Já com a Analu Prestes, era uma festa permanente. Foi sempre uma atriz muito instintiva e ousada. Acho que se a A$suntina  fosse outra, teríamos um outro tipo de filme.  Ela me pareceu fundamental para o filme, que foi pensado em Paris para ela. Cheguei com o roteiro pronto e a convidei uma vez mais. Amei a sua ousadia. E a filmei anos depois para um documentário sobre seu trabalho em artes plásticas. A Analu pode ser tudo e é muito gente!


LC – omo o senhor avalia a crítica cinematográfica brasileira atual?  O que é fundamental para ser um crítico de cinema?

LRF – Fundamentalmente a-m-a-r muito o cinema, a literatura, a filosofia, a músia, o teatro, a vida propriamente dita. Atualmente eu leio muito pouco o único jornal que temos no Rio e eu não é bom. Antes tínhamos o Alex Viany, o Muniz, o Jaime Rdorigues, o Zé Lino, o Gustavo Dahl e até mesmo o Cacá Diegues que escreve melhor do que filme. E já o defendi em dois de seus filmes. Mas está longe de ser um grande cineasta. Hoje temos quem? O Marcelo Ikeda e o Carlinhos Guimarães de Mattos – quer raramente me chega ás mãos. Pena. Acho que São Paulo tem mais críticos. Mas, não sei, pois pouco leio o Estadão e a Folha.


LC – O senhor sente falta de publicações sobre cinema e sobre cinema brasileiro em particular. Me refiro a publicações que pensam o cinema que fazem pensar o cinema...

LFR – Eu sempre me preocupei muito com isso e até cheguei a organizar um livro com vários depoimentos do Godard, na época proibido pela sua versão do “ Maria”, mãe de Jesus. Estava proibido nos cinemas e liberado em livro. Bobajada da censura, que depois o liberou sem nenhum  corte. Mas os religiosos de plantão queriam mostrar a sua força política e caíram de pau no filme. Bobajada histérica! Mas me permito achar que sem um certo conhecimento teórico do cinema, o máximo que se chega, é no pífio cinema-televisivo-publicitário da Globo Filmes. Seria bom que os nossos editores gostassem um pouco mais do cinema, como instrumento político, psicanalítico e mesmo filosófico. Ora, por que nunca se editou um roteiro como  Os Fuzis, Matraga, Vidas Secas, Bang-Bang, Gregório de Mattos e tantos outros? Preguiça ou fascismo? Mas... quem sabe não melhorará no futuro?


LC – As suas colagens, que ilustram seus textos na coluna Cinema de Invenção -, no extinto site VIA POLÍTICA, tem o mesmo princípio da montagem cinematográfica. Poderia comentar qual o pensamento embutido nessas colagens?

LRF – Digamos que as colagens são uma apropriação e transformação de imagens muito comuns, quase idiotas. Trabalho sobre o lixo, querendo pensar tanto a história, como o cinema. Políticos, bundas, peitos e quinquilharias acabam virando análise de olhares mais atentos, como o  teu por exemplo. Por outro lado, faço-as como terapia, assim como penso e escrevia para o Via Política, que é um seguimento afetivo do velho Versus. Mas não escrevo como crítico, teórico ou historiador. Escrevo como amigo do Matico e velho cineasta que bota no papel algumas reflexões do politólogo e amigo de juventude Sindoval Aguiar.Ele foi um cineasta delicado que agora se diz ex-tudo. Mas é também um poeta exemplar.  Deveria ter feito política, mas também odeia todos os Partidos. Gosto de discutir e escrever com ele. Somos  diferentes quanto ao entendimento do no que foi transformado o cinema: para ele já acabou. Eu ainda insisto em ser chato! Não vejo mais tudo como via antes, mas ainda me emociona ver trabalhos inovadores como Anticristo, Serras da Desordem, o cinema de Agnes Vardas, Visconti, Straub, Pasolini, Kubrick, Resnis, Rivette e alguns Bertolucci. Sem falarmos em Glauber, Joaquim Pedro, Joel Yamagi, Sergio Santeiro... 


LC – Seus filme mais recentes – curta-metragens – estão disponíveis no Via Política. Em As Últimas Imagens de Tebas, pareceu-me que o senhor usa  cinema pra uma crítica do processo de fazer cinema. Um filme mostrando  ao cinema que ainda e possível fazer filmes.

LRF – Não disse, mas amo muito o cinema-histórico filosófico do mestre Roberto Rossellini. Quando foi para a TV, usou magistralmente o cinema e a TV, para pensar a história e o saber – sem abrir mão da poesia. Fez uma política nova e viva com o cinema e a TV. “ Tebas” foi um trabalho ousadíssimo que me encantou fazê-lo tal como está: mudo! Os textos são cicatrizes do saber trágico. Usei os recursos das Colagens para mostrar que o cinema ainda pode ser simples, criativo e original. Desagradou a todo mundo, mas amei fazê-lo tal como esta. Sei que o Ikeda gostou e o queridíssimo Mario Alves Coutinho também. É uma viagem livre associada a velha Tragédia Grega. Estranhamente vivido por mim que não sou ator. Valeu a pena a ousadia, pela poesia, pela complexidade, pelo exercício e pela potência,  pois foi um desafio proposto pelo querido Marcelo Ikeda para que eu fizesse um filme mudo.Claro, escolhi os dois “ Édipos” com a mais ampla liberdade. A colaboração afetiva do André Scucato foi da maior importância pois me deixou livre para voar em condições no momento depressiva, pois estava cego com problemas de catarata. Depois do “ Tebas” já fiz “ O Discurso das Imagens”, concluídas com a colaboração do Lupercio Bogea. Desertos”, com o talento Pedro Bento. E falta editar “ Trabalhos” e “Fragmentos”. Isso feito vou dar um tempo, pois preciso cuidar um pouco mais de mim.

                        

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Tramas e Montagens Visuais


Luiz Rosemberg Filho - Colagem

Método deste trabalho: montagem literária. Nada tenho a dizer. Somente a mostrar. 
Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os. 


Walter Benjamin

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Materialidades e Experiência da Visão

Luiz Rosemberg Filho - Colagem

A obra nunca existe num em si definido pela materialidade. Ela encontra-se, portanto, aquém e além da visão: aquém, na sua autonomia de objeto; além, na sua existência que se situa paralela ao mundo da experiência. 


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Imaginação, Cinema e Contradições I

Mestre apaixonado por Cinema e Filosofia, Leonardo Carmo, poeta, compositor, jornalista e Coordenador dos Cadernos de Cinema e Educação, entrevista o cineasta Luiz Rosemberg Filho, Rô para os mais íntimos.

Para Regina Viana, amor cinematográfico.

Luiz Rosemberg Filho - Colagem

O homem de hoje não cultiva o que não possa ser abreviado
Paul Valéry

Leonardo Carmo – Crônica de um Industrial, escolhido para representar o Brasil no Festival de Cannes, em 1978, foi censurado pela Ditadura do Golpe Militar no mesmo ano. Gostaria de perguntar ao senhor: que influências teve na produção deste filme? Que cineastas ou teóricos o influenciaram na construção desta crônica cinematográfica?

Luiz Rosemberg Filho  O nosso Crônica foi uma espécie de historização do nosso vergonhoso e trágico retrocesso político, que acabou virando um novelão no SBT. Mas não poderia virar outra coisa. Vivíamos entre a idolatria da pátria e a ignorância retumbante, imposta de cima para baixo. Só que ao invés do espetáculo com a política, como em muitos “ filmes” da época,  era o  enterro do caos interno e do despedaçamento do que nos restava ainda de humano, que nos interessava, como análise das nossas contradições.  Vinte e tantos anos de retrocesso e estamos ainda num processo demagógico sem gozo, invenção ou transgressão. Penso que o filme continua atualíssimo, poético, ousado e necessário. E como ainda estamos dominados por uma política-espetáculo é o que é como referência do saber. Convenientíssimo aos homens de negócios, bancos, religiões,  meio de comunicação e partidos políticos. Não ao saber e a poesia. E, muitos foram as contribuições visíveis de “ Macbeth” ao “ Bravo Guerreiro”. De Johann Sebastian Bach a Brecht. De Fernando Pessoa ao “ O Leopardo” de Luchino Visconti. Mas de modo algum é um trabalho ilustrativo do Outro, mas de reflexão sobretudo tudo e todos. O filme é uma espécie de sonho-trágico da nossa história. Uma cantata de Bach.

LC – Li o parecer da Censura Federal recomendando o veto ao Crônica. Temia-se que liberado, o filme derrubaria a Ditadura no País (sic). Qual foi a reação do público e da crítica quando o filme pode ser exibido?

LRF – O Brasil sempre foi um país muito estranho. Crônica não foi pensado  para ser simples, difícil ou mesmo um Manifesto Político. Foi, para todos nós um delicado e difícil aprendizado  de  novos caminhos, no caos político reinante. Compreendi que se nós  persistíssemos em avançar – o que fizemos – limparíamos em parte, a desleixada sujeirada política dos tempos em nós e no público, gostasse ele ou não. Já com relação à Censura, tenho todos os pareceres que são absolutamente cômicos e ridículos. Imagina se um filme como o Crônica mobilizaria estudantes e operários para uma revolução? E nem foi feito para isso. Mas, claro que os anos de silêncio e proibição, despotencializaram a importância reflexiva do filme e que só hoje está sendo pensado. Brasil, né? Claro também que nosso público foi e segue sendo permanentemente brutalizado, humilhado e enganado por espetáculos vazios. Leitões, Padilhas, Meirelles e outras aberrações do nosso fascismo tropical. Lixo! Passem hoje o “ Crônica” ou “ Deus e o Diabo” ou ainda “ Terra em Transe” e veja se o público entenderá como uma novelinha, ou pegará em armas. Quanto ao público de esquerda, só uma pergunta: que esquerda?

Luiz Rosemberg Filho - Colagem 


LC – Naquele momento qual era o pensamento político do senhor? Vou insistir:  a maneira como as personagens foram construídas, a trilha sonora, a montagem, tudo isso foi pensado para destruir o sistema capitalista?

LRF – O sistema capitalista sempre foi mais forte que qualquer filme. Pô, não acabaram com a Revolução de 1917? O que é a Rússia de hoje senão um prostíbulo de lindas mulheres, trabalhando para a Máfia Russa? Bem, a “nossa” revolução era vendida como vitoriosa, sucesso, estardalhaço e que seria para sempre. Deu no que deu: Sarney, Collor, FHC... Fizemos com o “ Crônica” um filme sofrido sobre o silêncio, a imobilidade, o medo, a perda e por fim a morte de tanto da política como do amor. Creia, toda desintegração de algo fundamental verdadeiramente  honesto nos matou um pouco a todos.  Uns morreram, outros envelheceram e muitos estão doentes. Queríamos outro Brasil, e o que tínhamos era só miséria, sangue e espetáculo. Mas, convinha à Ditadura, né?

LC – A trilogia Crônica, A$suntina das Amérikas  (1976) e O Santo e a Vedete, (1982), dão me impressão de ser uma escrita fílmica da história do cinema. No entanto, o pensamento parece estar banido do cinema. O que o senhor pensa disto?

LRF – São filmes diferentes, mas que de certa forma tentam questionar o pensamento brasileiro da época. Gosto muito dos três e me sinto orgulhoso pelos resultados e pelas pessoas que  trabalharam. Muitos, velhos amigos importantes que se já foram. Hoje não se questiona mais nada, pois o cinema é só dinheiro, traição, diluição, desvio do dinheiro público, burocracias, poder e um erotismo televisivo burro para as revistinhas de sacanagem. A mídia comprometida com a esculhambação do cinema e do país, também não tem o menor interesse que nada seja alterado; para usar e faturar com “ Bruna Surfistinha”, a “ Fazenda” do SBT, do BBB da  Globo e outras babaquices deixadas pela “ revolução” do capital. Mas... não seria uma maneira da tal da “ revolução” continuar de maneira indireta?

LC – Críticos respeitáveis como Ismail Xavier, Jean-Claude Bernardet, Fernão Ramos e Jairo Ferreira admiram seus filmes. Mas, não há estudos mais amplos sobre o cinema de Luiz Rosemberg Filho. A que o senhor atribui isso?

LRF – Me creia, nunca gostei de aparecer e aprendi isso com o meu saudoso pai, que era do velho Partidão. Também nunca usei o cinema para estar nos Festivais, festinhas, panelinhas ou zonas. Me permito não ser “ celebridade” e deixo isso para o baba ovo do Amaury Jr. Que tem mais estilo mundano com suas vedetinhas de almanaque. Tento passar e me deslocar no silêncio e na dor da existência, de se viver num país como o nosso: belo por fora e podre por dentro. Também não sou, nem nunca fui depressivo, bodado... mas desencantado com o lixo político que tivemos e que temos de suportar. Isso sem falarmos nos homens da mídia. Como falta delicadeza e entendimento ao mundo da comunicação, é o silêncio que predomina sobre nossas vidas. Ora, quem se lembra de Fernando Coni Campos, Armando Costa, Isabel Ribeiro ou Miguel Torres? O esquecimento faz parte do jogo do poder, para que predomine a mediocridade das santificadas “celebridades” do senhor Amaury Jr. Haja saco!

LC – Seu cinema tem a história como personagem central.  Nos seus filmes a realidade parece ser feita da mesma substancia dos sonhos. Quais as fontes teóricas, filosóficas, poéticas do seu cinema?

LRF – Eu uso e abuso de Albert Camus, de Oswald de Andrade, de Zé Celso, de  Tchekhov, de Godard, de Brecht, de Bergman, de Wagner, do teatro do Strindberg e do Ibsen. De Rimbaud, do Fernando pessoa e da psicanálise que fiz por muito e muitos anos. Gostaria de ter tido uma melhor formação para usar Benjamin, Marx ou mesmo Melville do genial “ Bartleby”. A invenção para mim, passa por um casamento feliz feito com vários segmentos do saber, até hiperdimensionando a imaginação como foi o caso de trabalhos como “ Imagens”, “Guerras”, os vídeos experimentais, "$em Título", “O Discurso das Imagen$”,  "Desertos” e mesmo “ As Últimas Imagens de Tebas”. Digamos que são registros da nossa barbárie sem o menor viés do espetáculo. “Dinheiro” então, é um a manifesto contra tudo e contra todos. Mas são trabalhos amorosos e delicados. A revolução com o cinema, se faz nele mesmo. Claro que, pensando a realidade sem cair no panfleto sem poesia.
  
LC  - “ Crônica de um Industrial” remete ao “Zabriskie Point” de Antonioni, ao “Teorema”, de Pasolini: eles recusam o capitalismo cada um ao seu modo. “ Crônica” abre com uma manchete de jornal em letras de sangue onde lemos uma frase de Godard: “ sempre o sangue, o poder, o dinheiro”. Mas talvez mais que Godard, o filme tem uma estrutura narrativa próxima das teorias de Eisenstein. Faz sentido para o senhor o que eu digo?

LRF – Faz mais do sentido pois é perfeita a tua colocação. O Eisenstein de o “Ivan, o Terrível”, foi um referência fundamental  para o “Crônica”, assim com o imobilismo crítico do cinema do Antonioni, do Pasolini e do Luchino Visconti de “O Leopardo” que vejo sempre. Acho hoje que essas referencias registradas inconscientemente na elaboração do “Crônica”, deram ao filme um relaxamento poético das imagens poderosas de Antonio Luis e da montagem dialética de Ricardo Miranda.  Não é um filme coca-cola, como muitos que se faz hoje aqui. Também não queríamos um filme de  identificação imediata mas de “ópios, edens”, como a poesia de Paulo Leminsky e Itamar Assumpção. É preciso também não esquecer meu encantamento declarado por filmes como “ Terra em Transe”, “Blablablá”,  e o “ Bravo Guerreiro” do Gustavo Dahl. Por isso mesmo ficou mais um filme de sonhos, dúvidas e ao de certezas. Deixamos vagar a imaginação, que só vi potencializado depois no “ Gregório de Mattos” e no “ Serras da Desordem”.

LC – É recorrente em suas análises dizer que estamos – o Brasil – vivendo o “Quarto Ato do Rei da vela”, texto teatral do escritor brasileiro Oswald de Andrade (1890-1954) encenado pelo Grupo Oficina em 1967. Dá sua perspectiva qual a relação do Brasil 2011, com esse quarto ato do texto oswaldiano?

LRF – Bem, basta que se veja o que se viveu e ainda se vive em Brasília, para entendermos, ainda melhor hoje, o que eu chamo de o quarto ato do “Rei da Vela”, do Oswald. Me permito achar o nosso escritor mais próximo da modernidade,  pois foi sempre um revolucionário pela raiz. E para compreendermos a sua desmoralização das  nossas elites,basta que se veja um político – seja lá de que Partido for – falando na TV. São religiosos, bufões, cômicos e sem uma só verdade em suas muitas imagens. Parecem muito aqueles Pastores histéricos a vender suas Biblias e quinquilharias na TV. E como esse instrumento eletrônico é uma espécie de dona-de-casa da política, o novelão ta montado. O “Astro” é observado como sujeito sem história real alguma. Dança conforme a música e só lhe interessa brilhar, enganar e o poder. E faturam bastante para mentir que são políticos sérios, pastores ou “artistas””. Haja saco, né?

Luiz Rosemberg  Filho - Colagem
                  
LC – Soube que o senhor tenta viabilizar a produção de um filme em Paris onde acontece um encontro imaginário entre o Oswald de Andrade e o filósofo alemão Walter Benjamin. O senhor poderia adiantar algo do roteiro, da produção, dos atores? Qual a ponte entre a antropofagia de Oswald de Andrade e a Iluminação Profana, de Walter Benjamin?

LRF – Quando eu morava fora, disse uma vez para o Glauber que seria interessante criar um encontro imaginário entre Oswald e Benjamin. Na verdade, o que eu quis algum tempo depois foi filmar “O Diário de Moscou”, do Benjamin, analisando sua passagem pela Revolução de 1917. É um livro belíssimo, triste e já apontava que a  Revolução seria transformada num combustão ou bostão de burocarcias. Pena pois foi uma revolução criativa de verdade. Lenin, Trotski... e o Comitê Central queria uma revolução dentro das pessoas e não só fora. Não deu. Virou isso que tá aí, entre a Zona e a Máfia russa. E quem mais fatura com isso? A história é que não é. O cinema menos ainda. Pena.
                   
LC -  Existe um curta-metragem de 14 minutos, intitulado “RÔ”, dirigido e produzido em Paris por Sylvie Pierre e Georges Ulmann, em 1985. Como se deu esse encontro como esses realizadores vieram a saber do seu cinema, qual o interesse deles? De que se trata esse filme?

LRF – A Sylvie Pierre que conheci fora do país, morou no Brasil e tinha duas paixões fora o marido Georges: o David Neves e o cinema brasileiro. Nos dávamos relativamente bem, lá fora. Quando eu voltei, li um artigo dela que não era verdadeiramente terno, nem analítico em relação a minha pessoa e me afastei. Como ela tem espaço lá fora, é cortejada por uma multiplicidade de traidores e sabujos, daqui. Como não sou sabujo, nem cortejo ninguém por respaço, prefiri ficar na minha. Mas, se não estou enganado, o filme RÔ, é um documento afetivo em relação a minha estadia em Paris. Eu estava me recuperando de um acidente com um janela que caiu e quase cortou definitivamente o meu deda da mão esquerda. Mas, é mais que um registro amoroso que propriamente um documentário. Acho que nunca passou em canto algum e eu nunca mais o vi.

LC – O que poderia me dizer dos fimes “ Jardim das Espumas”, de 1970; “ Paraíso no Inferno”, 1977; “ América do Sexo”, de 1969 e “ Imagens”, de 1972? Isto para citarmos alguns de seus filmes. Do “ Imagens” só temos a sinopse: “ Sem diálogos, sem som, atores desconhecidos”. A proposta é esta mesmo?

LRF -  O “Jardim das Espumas” era um confronto radical-teatral, com o regime enlouquecido da época. Era um filme de ficção científica que mostrava o seqüestro de um embaixador. O fizemos em dez dias ou talvez menos e , foi ótimo tê-lo vivido como foi feito sem o menor viés de espetáculo. O “ Paraíso no Inferno” eu só colaborei no roteiro, pois era um longa do queridíssimo ator Joel Barcelos que conheci na juventude no CPC. Já o “Imagens” era um filme experimentalíssimo sobre o mundo silencioso que éramos obrigamos a suportar aqui. Era o mundo, sem som algum e sem letreiro. O único que aparecia era o do Glauber a quem o filme é dedicado pois ele estava proibido de voltar ao país. Mas nem mesmo ele viu pois quando eu cheguei em Paris ele foi para Roma. Quanto aos atores eram pessoas muito queridas. Amei tê-lo feito apesar do fotógrafo que era uma bosta humana! Mas como tinha uma Bolex, o usamos. Talvez seja no cinema brasileiro a única pessoa que me passa nojo. É podre por dentro e por fora. Felizmente nunca o respeitei nem como crítico. É lixo!
                   
LC – O curta-metragem “ O Espectador Que o Cinema Esqueceu”, 1991, me parece uma laegoria de um certo tipo de espectador. Como o senhor vê a dialética cinema-espectador nos dias de hoje?

LRF – Me permito achar que o senhor Waldemar, personagem principal do filme do talento Joel Yamaji, foi devidamente esquecido e superado por um público idiotizado, violento, emburrecido, empobrecido, doente e sem o menor equilíbrio emocional. Formado pela ditadura e continuado depois pelos que vieram. Engolem seja lá o que for e se sentem felizes por serem enganados com a violência-espetáculo ou com as quinquilharias da TV. Lamentavelmente o espectador de hoje é só uma constelação de aberrações vindas da TV. É Atal da “Cilada.com” ou de “ Pernas Para o Ar”. E tomem de picaretagem! De modo algum posso respeitar esse tipo de “ cinema”. Pena.

LC – Nessa linha de raciocínio gostaria que o senhor rememorasse um filme que sei lhe é muito caro. “ Gordos e Magros”, de 1976, do fotógrafo Mário Carneiro, de valiosa contribuição para o Cinema Novo. Algum fotógrafo brasileiro chama sua atenção no cinema brasileiro atual?
                   
LRF – “Gordos e Magros” foi um encontro amoroso dos velhos amigos do Mário Carneiro. Todos os figurantes (pois era o que éramos) trabalharam por prazer. Sempre fui muito agradecido a ele, por ter fotografado meu  primeiro longa com a Adriana Prieto, Echio Reis e Sindoval Aguiar. E se não ficou bom, a culpa foi só minha. Me creia, “ Gordos e Magros” é uma comédia  requintadíssima e que usei como referencia simbólica em “O Santo e a Vedete”. Mas... ainda hoje continuo gostando da velha guarda que me acompanhou pela vida: o Renaud Leenhardt, o Pedrinho de Moraes, o Antonio Luis, o Dib Lufti e o Waltinho Carvalho que fez o genial “Lavoura Arcaica”, o seu trabalho mais denso e poético. Tem o Toca Seabra que eu gosto muito. Paro por aí.


Luiz Rosemberg Filho - Colagem

domingo, 13 de novembro de 2011

Casamento Com a Morte

Quem, se não nós? , nas salas de cinema Se não nós, quem?, filme de Andres Veiel, narra a história de Bernward Vesper e Gudrun Ensslin. O filme é baseado no romance póstumo de Vesper,  é considerado um legado para a sua geração.


Gundrun e Vesper dançando na festa de casamento
         Ele, filho de um escritor marcadamente nazista. Ela, uma promissora estudante de Literatura. No processo dos anos 1960, Gudrun encontra no voluntarismo político a arma eficaz de combate  contra o fascismo que ela crê instalar-se na Alemanha e no mundo. A escrita migra para explosões e tiroteios.
         Essa é a munição para as duas horas do filme que mergulha o espectador num complexo processo entre ficcionalização da história e historização da ficção. A velocidade mental de Andreas e Gudrun deixa sem fôlego esses videogames mortais. O que fascina ainda mais ao menos para alguns é que tudo isso se dá um país que ocupa o imaginário de milhões: a Alemanha. Mítica. Racional. Wagneriana.  Romântica. Hitlerista. Comunista. Um país com o imaginário além do futebol.
        Nessas breves notas me dedico mais a comentar o filme que analisá-lo. Por isso, penso que ele pode ser melhor curtido se lembrarmos ao espectador uma outra película alemã com o mesmo tema e personagens.
         Refiro-me ao filme O Grupo Baader Meinhof, (2009)  outro triller psicológico focado nas ações terroristas do grupo e suas influências sobre juventude alemã. Dirigido por Uli Edel,  baseado no livro de Stefan Aust. É significativo que os dois filmes sejam baseados em obras literárias.


Ulrike Meinhof, Andreas Baader e Gudrun Ennlins, núcleo inicial
Do Grupo Baader-Meinhof
         A Literatura e o seu ensino na Alemanha pós-guerra, os escritores nazistas e os que se exilaram no período hitlerista. Os autores atuais – no contexto do filme, como diz um professor, vocês estudantes se refugiaram nos clássicos alemães -  de um país dividido, a qualidade das obras em debates públicos e em reuniões de ativistas, fermento para mostrar que mesmo equivocados esses jovens radicais não desprezavam a cultura literária.
       Mais, a cultura literária serve de guia de orientação para que se entenda muito da contextualização do filme.  Quem, se não nós?, traz esses debates mais a tona que o filme de Uli Edel. Mas, pode-se dizer que eles se completam, se complementam. Ambos são indispensáveis para uma reconstrução cinematográfica da história alemã contemporânea.
         Estes filmes encontram eco no debate atual das revoltas em Londres ou das manifestações na Espanha mais recentemente. A recusa à social-democracia é o pano de fundo dos filmes. Hoje, o descontentamento nos bairros londrinos são avaliados diferentemente tanto por filósofos conservadores como Roger Schruton e iconoclastas como Slavoy Zizek.
          Imagens documentais da época como o alegre bombardeio dos americanos sobre os vietnamitas, a morte de Jack Kennedy e Martin Luther King, a presença dos Panteras Negras,  A Dialética da Libertação de Stokly Carmichael e a contracultura estão na ambientação dos dois filmes.
        Um ponto polêmico nos filmes e deve ser um dos mais doloridos para a consciência alemã está no final. No filme de Veiel, Gundrun  e todos os outros integrantes do Baader Meinhof se matam. Isso não aparece de forma explícita. O nome de Ulrike nem mesmo é mencionado.  O que marca talvez percepções políticas entre os dois diretores. No filme de Uli Edel, os militantes são sistematicamente eliminados à tiros em suas celas.
       O extremismo desses militantes de qualquer modo reforçaram o estado policia-militar que conhecido também como Estado de Direito, Estado Democrático. Uma discussão problemática. Mas poeticamente, talvez em nome da dor, pode-se dizer que Gudrun e Ulrike sejam guerreiras Valquírias, embora nada tivessem de virgens.Para usar uma imagem recorrente, o espectador ao entrar na sala de cinema dá de cara com um pesadelo.


Vesper, Gudrun e Andreas: 
como combater o fascismo?
       
      E ao sair da sessão, o pesadelo continua. Ao  menos para aqueles que mesmo discordando da violência e do terrorismo não podem desconhecer os crimes cometidos em nome da democracia. A morte mais violenta, a invisível, o venenoso e viciante gás do consumo mata com a mesma letalidade. Ou não?
     Nesse caso, se a pizza não descer depois do filme, ouvir a banda Rammstein, cai bem. Heirate Mich, por exemplo. E mesmo com tantos desacertos Gudrun Ensslin e Ulrike Meinhof merecem a canção. Talvez acalme o espectador. Mas, não apazigua a consciência e a exigência de pensarmos o presente.
    
Leonardo Carmo, é tarólogo e atende gratuitamente no trevo de Goiânia para Trindade.