domingo, 27 de outubro de 2013

Edição 1999 de 27 de outubro a 2 de novembro de 2013
Cinema/Elysium
O futuro entre a fome e a fúria
O novo filme do sul-africano Neill Blomkamp potencializa o irreversível: o fosso entre ricos e pobres é insuperável
TriStar Pictures/Divulgação

     
Os atores Wagner Moura e Matt Damon, em cena de “Elysium”, ficção futurista que retrata a terra como um grande lixão


Leonardo Carmo* 
Especial para o Jornal Opção
“Elysium”, de Neill Blomkamp, ficção sobre a Ter­ra em 2159, é me­nos uma ficção de um futuro imperfeito e mais uma fantasmagoria do presente. Neste mundo, a humanidade é dividida em dois grupos: o primeiro, riquíssimo, mora na estação espacial Elysium, e o outro grupo, o pobre, vive numa Terra miserável, doente, totalitária.
 
Mas o que é uma fantasmagoria? Fantasmagoria é aquilo que tem a aparência do real e se torna mais real pela aparência, é o real vivido e consumido. A fantasmagoria é a alegoria da contemporaneidade, seus espectros, diferentemente daqueles do barroco teatral, são históricos e tecnológicos. Elysium é o fantasma da idade de ouro do capital, da burguesia financeira.

Elysium, a estação na órbita da Terra, recorda os Campos Elíseos  dos guerreiros da mitologia greco-romana. No tempo do filme, os heróis mitológicos da sociedade pós-industrial, obtêm, ao seu modo,  a imortalidade.  Nesse sentido o filme é uma crítica aos aspectos regressivos da tecnologia que opera milagres para a casta detentora do capital em uma perspectiva utópica restrita. Essa fantasmagoria “tecnológica” nos filmes de ficção marca época com “Exterminador do Futuro 2: o Julgamento Final”, de James Came­ron, 1991, e tem em suas origens “A Guerra dos Mundos”, transmitida pelo rádio nos Estados Unidos,  nos anos 1940, por Orson Welles.

A crítica dos aspectos catastróficos do progresso possibilita ao cinema de massa a análise fílmica para além do julgamento de um filme como obra de arte. O que interessa é o conhecimento dado pela mediação da obra de ficção com a realidade. Os aspectos expressivos dessas obras não raro estão em confronto com o establishment  mas o seu sucesso comercial limita os críticos ao velho embate “cinema X Cinema”. Costa Gavras em o “Capital”, (2013) constrói sua metáfora dos Campos Elíseos no Fénix Bank francês. A crítica da economia política é o argumento da arte cinematográfica desde o fantasmático “Viagem à Lua”, (1902) ao “Gravidade”, (2013).

A desconfiança na infalibilidade tecnológica é o tema de Neill Blomkamp em “Distrito 9”, no qual, para o desespero dos ufólogos, alienígenas chegam doentes ao planeta Terra e são confinados em guetos da Cidade do Cabo. O ponto crucial neste filme é que não há uma tecnologia superior alhures e os alienígenas nem mesmo po­dem contar com um programa do tipo minha casa minha vida, uma fantasmagoria contemporânea.

“Elysium” potencializa o irreversível: o fosso entre os ricos e os pobres é insuperável. A ideia de um progresso interminável é o que empurra a humanidade ou a história, se quisermos, para extremos como os da narrativa deste filme. No filme, com frequência os moradores de Los Angeles olham para o céu vislumbrando Elysium, espaço da saúde, da cura, da felicidade, da longevidade perenes. A sociedade  perfeita só é  possível para a minoria.

Elysium é a utópica superação do reino da necessidade. Los An­ge­les é uma Jerusalém cuja produção principal é a de robôs e armas de guerra. Ne­la, o “lumpenproletariat” sobrevive controlado pelo Estado policial-militar. Neill Blomkamp filma o espetáculo como reflexão da miséria e do totalitarismo, encontrados em obras como “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, e “1984”, de George Or­well. A miséria nessas  obras desmistificam as utopias do igualitarismo.

Elysium é a distopia, a disfunção, a fome, a fúria. Esse tema re­cor­rente reaparece em outros filmes, como “Mad Max”, (1979). A radicalidade de “Elysium” vai além da dicotomia Império versus República, de “Guerra das Estre­las”, (1997), e exibe a existência fantasmagórica pelo domínio dos milionários de vida eterna. O futuro é plutocrático.

Essas referências reforçam a pretensão do filme como crítica do espetáculo da abundância e da pobreza. O espectador atento perceberá que “Elysium” dialoga com o “Doutor Fantástico” (1964), de Stan­ley Kubrick, e que Wernher Von Braun, de Peter  Sellers, parece ter inspirado a atuação do Spider de Wagner Moura. As semelhanças ficam por conta da bizarrice de ambos. O primeiro, neuroticamente contido, cerebral, celebra o fim do mundo como o início de uma nova era. O segundo, temperamental, explosivo, quer arrancar o poder dos encastelados em Elysium e promover a cura e a felicidade  terrenas. No filme, a fantasmagoria da cura que desce dos céus para a Terra.

Elysium lembra a estação espacial de “2001, Uma Odisseia no Espa­ço”, de Kubrick. Mas, se na ficção de Arthur C. Clark é um elaborado terror cósmico computadorizado, em 2159 isso se confirma como uma terrível obra da racionalidade. O papel que o cinema desempenha na sociedade contemporânea é tanto mais sério quanto mais aspecto de entretenimento aparentemente possuir. “Elysium” é um convite para refletirmos sobre 2013,  pelo menos no aspecto da saúde.  

O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, enfrenta resistência em ampliar um plano de saúde pública para os pobres norte-americanos. O Brasil vive às turras com a chegada de médicos cubanos e o programa Mais Médicos. No filme, o gran finale são as técnicas médicas antes disponíveis só aos cidadãos de Elysium, colocadas ao alcance de milhares de enfermos. Nesse sentido, bem-vindo Spider, interpretado por um frenético Wagner Moura, em plena posse da arte de atuar.
*É coveiro em Pilar de Goiás
  

Nenhum comentário:

Postar um comentário