sábado, 9 de fevereiro de 2013


Análise/Amor

Amor doce horror

Leonardo Carmo - Especial para O POPULAR09 de fevereiro de 2013 (sábado)
Divulgação
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Em Amor , Haneke filma o mal-estar da civilização

O austríaco Michael Haneke, realizador de filmes polêmicos como A Professora de Piano (2001), Violência Gratuita (2007) e A Fita Branca (2009), é um cineasta com a câmera ligada no mal-estar da cultura e da civilização. Em Amor, de 2012 (em cartaz hoje na mostra O Amor, A Morte e As Paixões), ele utiliza a técnica cinematográfica para discutir os limites deste afeto na civilização.
Há em seus filmes uma genealogia da moral, aproximando-o filosoficamente de Nietzsche. Personagens e situações são exibidas no limiar da razão e do pessimismo. O microfascismo nas relações sociais entre senhores e camponeses, pais e filhos, educadores e educandos são alguns temas recorrentes de seus filmes. Para quem encara o cinema como diversão, Haneke não é uma boa pedida. O fascínio criado pelos seus filmes incomoda o olho e a consciência do espectador.
Nessa fita o objeto é o amor, sentimento na ordem do dia. O mais popular dos sentimentos e também o mais estranho com suas idas e vindas, voltas e reviravoltas na ficção ou na realidade. Se o amor conduz os amantes para novas paisagens do gozo, da cumplicidade e permite a construção de universos particulares, o cinema serve a Haneke para criar um itinerário desconhecido e imprevisível nascido da superfície do dia a dia, do senso comum.
Há centenas de filmes bons e ruins sobre o tema e é nesse terreno que esta película estabelece um corte radical ao se situar na contramão de narrativas como Love Story - Uma História de Amor, de Arthur Hiller, ou o fantasioso Ghost - Do Outro lado da Vida, de Jerry Zucker. Ao modo dos filósofos, Haneke aborda o assunto de modo belo e terrível. Mesmo filmes como o Romeu e Julieta, de Baz Lurhmann, ou Inquietos, de Gus Van Sant, traduzem a densidade do amor como encontro e fuga, solidariedade e solidão. A película de Haneke, indicada em quatro categorias do Oscar, é um antifilme neste quesito. O amor e o horror estabelecem um diálogo mais próximo de um desconforto que da promessa de uma felicidade cinematográfica.
Haneke narra a história de um casal professores de piano, aposentados, Georges (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emannuelle Rivas), vivendo possivelmente o melhor momento de suas vidas: a velhice. Nesse sentido, o espectador é convidado a compor toda a trajetória da existência do casal sugerida naquilo que não se vê, mas pode-se imaginar. As personagens são mostradas no ponto mais alto de suas existências: concertos, passeios, conversas insólitas, aquilo que só é possível saborear com o avanço da idade. Esse afeto construído ao longo dos anos desmorona-se com o abalo de saúde de Anne. Haneke traça o roteiro da plenitude para a finitude.
A enfermidade é um monstro invencível. A ternura é truncada pelo cansaço e exasperação. A aura do amor é substituída pela coroa da morte. A potência amorosa é reduzida à infame degradação física e mental. O amor é um túmulo. Amor confronta o espectador não com a ficção na tela, mas com a possibilidade do sucedido ao casal estar ao alcance de qualquer um.
Anne parece entender a ruína dos acontecimentos que se avizinham. Sua recusa em ir para o hospital define o tom do filme. Ainda há nela a força do amor e ela se prepara para o embate. Georges se torna um fantasma. O filme corre no tempo da doença, expondo a linha tênue entre a saúde e a felicidade. O filme parece ele mesmo perder a respiração até que o coração pare de bater e o cérebro de funcionar. O apartamento torna-se uma câmara mortuária, as paredes apodrecem no mesmo definhamento do casal. O afeto se torna cinzas.
Todas as pequenas e indispensáveis bagatelas como as refeições, o lavar a louça, o turno das enfermeiras, os banhos tornam-se pesadelo. O amor, pássaro que voa, pesa, agora, como chumbo. O andamento musical do filme é acrescido de um elemento crucial: uma pomba. É a ave que dará a Georges a chave de interpretação de seus pesadelos e de como solucioná-los.
Michael Haneke desorganiza a casa dos afetos e joga com as virtudes da fidelidade e lealdade até o último dos minutos. Em uma metáfora possível, se o amor é um pássaro no filme, ele funciona como uma metáfora libertária. Se o amor é um voo, é preciso fazer uma escolha radical. Alguém com essa sorte corre o risco de receber a visita de uma pomba. E na hora certa, talvez, tenha o gesto de libertá-la.


Leonardo Carmo é mestre em Educação Brasileira pela UFG


Análise

Muito além da simplicidade

Lisa França - Especial para O POPULAR01 de dezembro de 2012 (sábado)

Livro é como um filho, fruto de uma paixão, de um desejo, no mínimo. Mas também pode ser a coroação de uma longa história de amor. É assim que vejo a obra O Cinema do Feitiço Contra o Feiticeiro, de Leonardo Carmo, que será lançada hoje em Goiânia na Escola Brasileira de Psicanálise.
O autor, poeta, músico e artista plástico, une suas paixões pelo cinema e ensino, com seu jeito próprio, elevando à distinção da arte o cinema comercial, misturando o entretenimento com a crítica revolucionária, como consegue fazer na vida trazendo pra escola seu pensamento fecundo e transgressor, educando adolescentes da escola pública paulista com a incoerência do artista que acredita no novo e na transmissão de valores da educação civilizatória conquistada a duras penas.
A contestação e a crítica estão no espírito do professor acostumado a conviver, ele mesmo, com a contradição desses dois Leos, não sem se arranharem e se machucarem o tempo todo dentro de si.
Por viver a contradição no seu trabalho cotidiano talvez não lhe tenha sido difícil arriscar-se em misturar a teoria elaborada do pensador alemão Walter Benjamin com o sucesso de bilheteria de Steven Spielberg,Jurassic Park, lançado em 1993. Em Benjamin, Leonardo encontra eco para seu fazer acadêmico, “não existe filme artístico ou comercial mas arte cinematográfica que pode qualitativamente tanto mais quanto menos expressar documentalmente a sociedade”.
O método de análise fílmica sugerido no livro incentiva os professores a arriscarem-se no uso do cinema comercial em sala de aula, mesmo sobre obras bem mais modestas em termos imagéticos e de conteúdo, porque o que Leonardo nos afirma é que cultural e artístico é o olhar, e não a obra em si, como foi escancarado por Marcel Duchamp com sua famosa A Fonte.
O educador pode aprender com o artista que tudo é material para ampliar o olhar, para convocar outros horizontes e estruturas. Se isto pode ser feito com um cartaz de propaganda, um rótulo de cereal, ou uma notícia de jornal, que dirá com o cinema, com toda sua sofisticação e complexidade de testemunho da história. Diz o autor: “Entrar em um cinema é vivenciar o tempo em que vivemos”. É a generosidade do olhar, a sua complacência, e também a sua cultura, que faz de um filme o que ele passa a ser.
Leonardo convoca seus pares a “tirarem o filme do gueto do entretenimento e instrumentalizar a diversão como meio de transmissão e de elucidação cultural de contextos sociais e globais definidos”, o que faz com muita presteza, analisando o filme em questão. Seu argumento encontra apoio ainda em Benjamin, que afirmava que todo documento da cultura é também um documento da barbárie.
Neste sentido, o filme escolhido de Spielberg explicita a questão. O autor ilustra como a técnica bem sucedida da obra cinematográfica de ficção científica, produzida dentro do esquema hollywoodiano da indústria cultural, estabelece um diálogo crítico com esta mesma sociedade.
O filme serve-lhe para ilustrar as verdades e denúncias que podem ser reveladas também pelo simulacro, pelo arremedo, pela falsificação própria do cinema de entretenimento e do cinema contemporâneo realizado a partir da computação gráfica. No artifício está gravada a dualidade do homem com a natureza, a sua ganância destrutiva, e a crítica implícita à loucura da ciência atual na sua ânsia em reduzir qualquer possibilidade de transcendência em mercadoria. Uma técnica que não está a serviço do bem-estar coletivo ou, para utilizar as palavras de Benjamin, como “uma chave para a felicidade”.
Fazer cinema, já vivenciaram muitos cineastas, é um pouco brincar de Deus. É criar vida, personagens, histórias, paisagens e, no caso específico de Jurassic Park, há ainda o exercício metafórico de denunciar o brincar de Deus não no plano simbólico, mas no real. A obra denuncia os riscos da união do capitalismo à ciência, e os perigos da manipulação genética e da biologia. Entre brincar de Deus e o querer sê-lo está em questão a vaidade humana e seu gosto pela destruição. Mas é também entretenimento.
O filme, como todas as produções do gênero de terror e violência, nos confronta com nosso lado obscuro e perverso, nosso fascínio pela morte e pelo sangue, pelo perigo e pela vingança. Os filmes do gênero, como apontado na produção Dogville, de Lars Von Trears, soca o estômago do espectador revelando-lhe, ao final, não a violência do filme, mas a de cada espectador ali sentado, torcendo pela morte dos inimigos e pela vingança implacável. O valor de entretenimento de Jurassic Park está também presente no prazer do espectador pela violência, por entranhas destroçadas, sangue derramado e canibalismo. Leonardo nos conta que o filme foi o grande recordista em vendas de cópias VHS (a tecnologia disponível na época) no Brasil.
Com o livro, o autor almeja contribuir com seus pares, professores, mostrando que o cinema comercial, de sucesso e rentável, também pode ser objeto de profunda reflexão sobre o testemunho da história, e da construção cinematográfica, o que faz didaticamente analisando o filme sequência a sequência.
Na leitura do seu relato de Jurassic Park, a gente revive-o de outra forma, com o prazer literário da sua escrita. Ele consegue reavivar todo o suspense mesmo para quem já viu e reviu diversas vezes o filme. Sua descrição das cenas transforma as sequências de Spielberg em uma obra poética de grande significado: “a força dos dinossauros é a de um trovão no interior da terra, talvez algo como a explosão surgida das experiências atômicas francesas na Oceania, o som do dinossauro é um som gutural da mãe natureza”.
O livro foi originalmente uma dissertação de mestrado na Faculdade de Educação da UFG, o que nos remete à outra alegoria, que é o que pode haver de monstruoso na construção de um trabalho acadêmico submetido a normas rígidas e a julgamento. Por isto a palavra acadêmica escolhida é defesa. Defesa dos ataques que deverão necessariamente vir da banca examinadora. Este estágio, como previu a mãe do autor, a quem é dedicado o trabalho, ele superou-o bem, livrando-se da assepsia acadêmica com sua linguagem poética e emocional. Emoção que nos arrebata desde o prefácio na narração de seus diálogos com a mãe que acompanhava o trabalho, presença que lhe trouxe, além do calor, sábias incursões: “Os monstros do cinema devoram você ou você devora os monstros do cinema”, teria dito Tarcila.

Lisa França é psicanalista, diretora de documentários e crítica de cinema




Cinema e educação na era dos dinossauros

Cineasta carioca, diretor de A$$untina das Amérikas (1976), Crônica de Um Industrial (1978), O Santo e a Vedete (2008) filmes censurados pela Ditadura Militar, produtores, exibidores e espectadores reacionarizados pela estética do consumo massivo. O texto abaixo publicado na www.revistamoviola.com

Por 

Publicado em 5 de Novembro de 2012


“(…) foram muitas as vezes que aprendi algo a partir de um filme americano tolo”.
Ludwig Wittgenstein

O Cinema do Feitiço Contra o Feiticeiro – Cinema de Massa e Crítica da Sociedade,  escrito por Leonardo Carmo e publicado pela PUC-Goiás neste ano, dialoga com o ensaio O trabalho da obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin. O livro afirma o potencial cognitivo e político da experiência cultural mediado pela tecnologia privilegiando o cinema. Escrito como dissertação de mestrado em Educação Brasileira pela UFG, o autor não discute as versões e controvérsias da recepção deste ensaio, objeto de estudos criteriosos no cenário acadêmico brasileiro. A leitura vai direto ao ponto das relações entre as possibilidades da existência da obra de arte na sociedade capitalista e assume o cinema como uma mercadoria que, se seduz o público, ao menos em alguns casos, ilumina criticamente o seu processo de sedução.
A mercadoria no caso é o Jurassic Park, dirigido por Steven Spielberg, 1993 e no revés, não é considerada uma obra inferior, mas uma obra da arte cinematográfica salva pelo que talvez ela tenha de mais condenável: sua função de distração e entretenimento em escala massiva. O livro não se presta ao cortejo da indústria cultural e nem mesmo defende o cinema de Hollywood. Antes de se atirar o autor aos dinossauros, é preciso encarar sua proposta ousada e reconhecer que mesmo cometendo equívocos, a abordagem – se pudermos usar o termo, original – traz o tema do trabalho da obra de arte para o centro de uma discussão pertinente: o que é analisar um filme? O cinema de massa possui qualidades emancipatórias ou ele é um espelho da autoalienação e faz da violência uma satisfação artística?
O Cinema do Feitiço Contra o Feiticeiro dialoga também com as formulações de Norbert Bolz. Não se deve por uma questão de respeito dizer que pensam o problema do mesmo modo. Mas, a constatação de que não há qualquer diferença entre obra de arte e mercadoria, pelo menos a partir da perspectiva de Walter Benjamin, é percebida por ambos.  A questão é como Leonardo Carmo responde a isso na sua proposta de análise do Jurassic Park. Não há em seu modelo, fetichização da obra de arte como uma elaboração das altas esferas que escapa da padronização industrial e nem o espectador é reduzido à passividade, ao menos diante desse filme. A película não tapa os sentidos do espectador, mas, atua como uma crítica à autoalienação e aí pode-se reconhecer que o cinema não é o único braço a subjugar a existência humana com gratificações artificiais que transformam a sociedade em um  Auschwitz  prazeroso. Nesse sentido, a educação escapa de seus aspectos formais e transforma-se em uma fuga desesperada tal como a empreendida pelos visitantes do parque no filme.
A análise proposta derrota o espectador vencido pela pipoca e o refrigerante e transforma o mergulho sensorial proporcionado pelo filme em uma aventura crítica. As sequências ganham outra errância. A troca de olhares entre o dinossauro e o caçador Robert Muldoon; a tolice de John Hammond, o proprietário do parque e o seu senso comum sobre a natureza da ciência e das práticas científicas; as observações quase de alcance popular de Ian Malcolm – lembrando ser o ator Jeff Goldblum o mesmo de A Mosca, de David Cronenberg e Independence Day, de Rudolf Thomme –, traduzem a complexidade da fita. A análise do papel da biotecnologia nos roteiros destas películas e a recusa em compreender a ciência com precisão matemática – por exemplo, o principio de incerteza de Heisenberg, que reaparece em O Mundo Perdido: Jurassic Park e Jurassic Park III, convida revermos o filme com outros critérios. O autor mostra que a revolução tecnocientífica, a fabricação de seres vivos com a interpenetração da codificação dos genomas e dos recursos da informática, integram o roteiro. O filme é dissecado como um cadáver: as sequências e planos aparentemente tolos ganham relevo geobiológico, sem nos esquecermos da função que os supercomputadores exercem durante toda a ação fílmica. Aqui, lamento Leonardo Carmo não ter dedicado mais análise à mise-en-scène do filme.
Partindo de Benjamin, o livro indaga: qual a experiência sensorial ou estética do Jurassic Park? O filme é uma fantasia materialista, um conto de horror onde as forças sombrias emergem do conhecimento científico ou do seu mau uso. O público interessado em análise fílmica ou o professor que sabe das dificuldades de instrumentalizar o cinema em sala de aula talvez encontrem nesse livro o esboço de um caminho, ainda que tortuoso e incerto. EmBenjamin e a obra de arte/ técnica, imagem, percepção, da Editora Contraponto (2012), Susan Buck-Morrs, em seu texto reconsiderando o ensaio da obra de arte observa sem descuidar do papel domesticador das mídias no contexto político e social, que  a formulação de Benjamin da politização (não partidarização) da arte exige a difícil tarefa de desfazer a alienação do sensório corporal, restaurar a força instintiva dos sentidos corporais humanos em prol da autopreservação da humanidade, e fazê-lo não evitando as novas tecnologias, mas, perpassando-as.
Em linhas gerais o autor valoriza o transitório, o efêmero, o que de imediato passa desapercebido.  Quem navega nessa direção é Mark Rowlands em Scifi = Scifilo – a filosofia explicada pelos filmes de ficção científica, publicado pela Relume Dumará, no qual a filosofia e o sentido da vida são examinados desde Frankenstein ou o dilema mente-corpo em O Exterminador do Futuro. Há pouco foi divulgado que a preparação de alimentos cozidos ajudou a desenvolver o cérebro humano.  Talvez outro olhar sobre o cinema de massa seja um forno de novos paladares ou pelo menos evite o azedume com que muitos desses filmes são vistos e analisados. Para Leonardo Carmo, o olhar do dinossauro revela menos o temor do homem e mais a crueldade deste para com a natureza. Brincar de Deus é perigoso, diz a paleobotânica do filme, doutora Ellie Satller.
Fica claro no livro que as formulações sobre arte e sociedade na era tecnológica formuladas no ensaio da reprodução da obra de arte resistem e sobrevivem a qualquer fetiche de popularização leiga ou acadêmica. Walter Benjamin seria o último a desejar um culto a sua personalidade mesmo em nome de não trair suas ideias, suas proposições encantadoras, fáceis de aceitar mas,  de complexa compreensão. Este ensaio recusa a ver o cinema de massa como mera fantasia e mostra pelo olhar do dinossauro que mais grotesco do que ele é a indústria cultural. A dimensão crítica do filme e do livro está nesta mediação. Para o autor, o dinossauro pode contribuir com a educação estética do homem e nesse sentido o feitiço se volta contra o feiticeiro. A experiência sensorial doJurassic Park não conduz o espectador ao sonho, mas, ao despertar da ilusão do domínio narcísico da natureza.