segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Rosemberg: Iluminação Profana ou Fantasias Imagéticas



Colagem de Luiz Rosemberg Filho



Se compreendermos a palavra como imagem e o som como movimento perceberemos que em REVISÃO CRITICA DO CINEMA BRASILEIRO, Glauber Rocha já antecipara em décadas a HISTÓRIA (S) DO  CINEMA , de Jean-Luc Godard.
As relações entre História e Cinema são apaixonantes e só os não-tímidos se atrevem sem petulância ou pedantismo percorrer as paisagens da história no tapete escatalógico do dinheiro.
O cineasta Luiz Rosemberg Filho, nestes tempos de mutismo cinematográfico pseudo-imagético,  desconstrói sonhos que espectadores cegos, surdos e mudos assistem no silencio e na solidão desta câmara mortuária que chamamos civilização.
Poderíamos chamar de iluminação profana o cinema de Luiz Rosemberg. Na historia do cinema de Rosemberg a imagem é o Prometeu traído pelos Deuses e pelos humanos. Apaixonado por Rosselini e Visconti, vejo Rosemberg no entanto próximo dos Straub no rigor e na sujeira dos planos.
Chamo sujeira esta exigência poética do cineasta que dá ao espectador não contemplação mas ação. Ver é pensar. Pensar é agir. Imagem é pensamento e ação. Nesse contexto se dá as referências a Walter Benjamin no cinema de invenção de Rosemberg.
EM O DISCURSO DAS IMAGENS, Rosemberg dialoga com “As Aventuras da Mercadoria”, de Anselm Jappe  iluminado pela indagação de Baudelaire se é possível fazer poesia no capitalismo.  Este filme atualiza para além de Guy Debord e dialoga com o Grupo Krisis.
 Chamo o cinema de Rosemberg de “benjaminiano” porque este é o cinema do pensamento-imagem – “denkenbild”. Sua obra – escrita ou filmada –  em parceria com Sindoval Aguiar, Renau Leendhart, companheiros de travessia, sabedores que não nenhuma Ítaca para alcançar ou chegar.
O DISCURSO DAS IMAGENS é uma síntese do cinema mundial. O recado de Sylvester Stallone – OS MERCENÁRIOS – é bacana: os Estados Unidos se desculpam muito. Diante da voracidade norte-americana ser modesto ou tímido é criminoso. Esta obra de Rosemberg é a nossa resposta ao melhor do cinema coreano, chinês, indiano, latino-americano, ao cinema independente americano.
Um filme para se ouvir com os olhos e assistir com os ouvidos. Não é só um jogo de palavras. A ação no cinema é um plano para destruir a impotência do não-pensar, o conformismo do amor, as narrativas falsas emancipadoras como a idolatria pelo mercado.
A beleza é o terror. Aterrorizar-se é um sinal de lucidez, de iluminação profana. A iluminação profana de Rosemberg é essa recorrência à Goya: as imagens do discurso, em curso, revelam os monstros criados pela razão.
Litza Godoy estabelece uma cumplicidade perigosa com o espectador. É uma anti-narrativa, uma desleitura,  é a imagem em discurso, guerra ao terror da tolice visual e auditiva que domina o que se chama de civilização.  Dela emergem as imagens que não queremos ver. Ou que não podemos mais pela proximidade destas mesmas imagens.
A origem é o alvo, diz Karl Kraus. Rosemberg processa um cinema das origens, descontínuo, um cinema que só empalidece quem tem sangue nas veias. Cultura ou nádegas? E o fim no começo como sempre.

Leonardo Carmo é radio-amador e trabalha como coveiro de Nova Alexandria, Goiás.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Tradição, Trabalho & Perdição

Uma ficção cinematográfica de Leonardo Carmo, de São Paulo

Em Paris, na Cinemateca francesa, Jean-Luc Godard e Guy Debord fumam durante a projeção de Trabalho, o mais recente curta-metragem de Luiz Rosemberg Filho. 

Colagem de Luiz Rosemberg Filho


Alexander Kluge e Jean-Marie Straub chegam em seguida. Andrzej Wajda e Jean-Marie Straub cumprimentam rápido Fritz Lang e Alexander Sokurov. Todos tomam seus assentos mas, educados, se mantêm cinematograficamente distanciados uns dos outros.

Rosemberg pede a Orson Welles para avisar que não irá na sessão. Mais tarde, se quiserem, poderão se encontrar para um jantar oferecido por Jean Renoir numa pequena propriedade nos arredores de Paris. Asja Lacis e Bert Brecht prometeram aparecer.

Trabalho corre em três linhas. A narratividade doce de José Carlos Asbeg. As imagens resultam resultado de uma pesquisa pelo lixo audiovisual dominante. As colagens de Rosemberg fundem-se às imagens, ora esclarecendo-as ora problematizando-as, como se discutisse com Theodor Adorno o que seria uma educação pós-Auschwitz.

Os críticos de cinema sentem-se confusos diante de filmes como esse. Inteligentemente dão bola preta ao filme. Alexander Kluge diz a Lang que se o Brasil investisse em cinema, Glauber Rocha poderia ter realizado Marx–Eisenstein – Notícias da Antiguidade Ideológica, há 20 anos.

Debord, com restrições, analisa a demolição do espetáculo pela utilização da montagem materialista do cinema. Straub lembra que Kurosawa sabe pouco de cinema, e que Trabalho é uma aventura pelo desconhecido continente do cinema. E Sokurov pensa que Lenin se sentiria angustiado diante deste filme. Wajda relembra o recorrente massacre de Katyn, e inclui agora os civis brutalmente exterminados em filas de supermercados, em escadarias de shoppings-centers, na super lotação dos aeroportos internacionais onde passageiros esperam passar férias – o que Debord observa irônico – para voltarem reanimados para o trabalho.

Alguns espectadores jogam ovos na tela. Godard incentiva mais força, mais força! Destruam esse filme! Um esquerdista, confiante, atira um ovo com força, mas ele rebate na tela e explode na cara do atirador! É um ovo podre. Não só o cinema, mas há certos espectadores que cheiram muito mal.

Este filme é puro Vulcano, diz Straub, uma viagem ao mitos que Prometeu destruiu mas que ressurgiram, ressurgem, ressurgirão pela alienação. Como em Alexander Kluge, um ensaio fílmico da crítica da economia política.

Um crítico com o manual do bom gosto em mãos afirma solene que Trabalho não é cinema. Um produtor sorri superior. Um estudante acha que há exagero do substantivo “fascismo” no filme. Godard diz que gostaria de projecioná-lo simultaneamente com Germaine Year Nine Zero. Os críticos reagem virilmente com mais bolas pretas para o filme.

Na casa de Jean Renoir, Rosemberg diz a John Huston que Trabalho retoma Crônica de um Industrial. No Crônica era a relação do capital com o trabalho. Já no Trabalho é a necessária negação dele como trabalho alienado, para se viver e gozar mais. É por isso que há a citação de Willian Faulkner no final do filme.

Glauber Rocha liga para Rosemberg e diz que gostou do filme. Rosemberg reclama que ele não viu o filme, e como pode gostar do que não viu? Glauber responde que ouviu o filme e que o cinema de Rosemberg é para ouvir, não para ver.

Katryn Bigelow chega atrasada e pede que Rosemberg escreva um texto sobre Guerra ao Terror, a ser lido por Camille Paglia ao som de Laurie Anderson numa Universidade do Texas.

Na animação do jantar Dominique Sanda e Jacques Tati convidam-no para flanar em Paris. Tímido, mas sentindo-se entre os seus, Rosemberg pede: vocês podem me levar ao Cabaret Revoltaire?

23/10/2011
Leonardo Carmo. 
Publicado em ViaPolítica

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

SP III


Leonardo Carmo

batendo perna por são paulo
perna a perna mar de pernas
perna no céu da sé da perna
sobre a ponte a perna passa
pernas aos pés do Tucuruvi

pernas santas Santa Ifigenia
profanas  pernas  Vila Madalena
pernas na sola dos pés de Itaquera
pernas pedalando pelo Ibirapuera

são paulo pela minha perna sobe
pelas pernas do Tremembé
perna  Sapopemba pelo Tatuapé
pernas passando pelo Sumaré
pernas, mas, cade os pés?

pernas da Fiesp pés descalços
pisam as pernas da garoa
pernas  moça da Paulista
tudo é passado Paissandu
pernas peras Pacaembu

batendo perna por são paulo
pelos pés um urubu se pega
com as pernas das  Perdizes
pelas asas leva piercings
pernas emas do Anhangabaú

meu travesseiro de pernas
das pernas de são paulo
pernas planam alamedas
pernas plumam  jardins
pernas estórias trêmulas
pela Penha e o Patriarca
por onde o pé de  valsa
de Pina Bausch sobe
batendo perna por são paulo

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O Cinema da Metafísica Bárbara


A mídia é um espaço imagético fantasmagórico. 
41 anotações sobre cinema e sua projeção e efeitos sobre a sociedade no século 20. 



Luiz Rosemberg Filho - Colagem


1
O cinema documenta a barbárie da época.

2
O cinema é o documento da barbárie da nossa época.

3
O cinema é a técnica de reprodução que documenta a barbárie de nossa época.

4
O cinema é o documento da barbárie.

5
Barbárie é a racionalidade técnica que submete a existência à produtividade normatizadora, reguladora. Exemplo: applemaníacos que cultuam Steve Jobs.

6
A barbárie é o produto da racionalidade técnica que simboliza tanto a emancipação quanto o sua regressividade. No célebre ensaio Benjamin finaliza: “Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte.”

7
O cinema de Hollywood documenta (representa) a barbárie de nossa época. O cinema de Hollywood é um documento da barbárie.

8
O mercado é o espaço imagético da fantasmagoria.

9
O mercado é o espaço imagético do tempo homogêneo. O espaço estético transforma-se em fantasmagoria. Arquiteturas da Destruição.

10
O mercado é o espaço imagético do novo sempre-igual.

11
O filme ou o cinema é o espaço imagético refuncionalizado.

12
O filme é um espaço imagético que pode ser analisado a partir da refuncionalização (Brecht). Arte e Ciência. Ciência e Arte. Exemplos: Philip Glass: Einstein on the beach. Meredith Monk: Dolmen Music. John Ono & Yoko Lennon no White Album: Number nine, number nine, number nine...

13
O valor histórico-antropológico do cinema: representação fantasmagórica do fantasmagórico.

14
Independence Day: espaço imagético da defensividade norte-americana. Corra Lola, Corra, recado rápido: time is money.

15
Jurassic Park: metáfora tecnológica da corrida biológica. Metáfora teológica ou crítica da ética criacionista.

16
Terminator 2 é uma metáfora teológica sobre a escatalogia tecnológica. Na outra ponta, David Cronenberg:eXistenZ

17
Terminator 2 é uma metáfora teológica sobre a restauração ou ressureição no sentido histórico da apocatástase.

18
A apocatástase fílmica é uma apcatástase histórica que tem como objetivo o cinema como semiologia da realidade.

19
O cinema é o espaço imagético ou possibilidade estética de interrupção do tempo histórico. Não se pense que estou enchendo a bola do James Cameron ou do Steven Spielberg.

20
Se a narrativa leva ao “tempo do agora”, o cinema é o seu espaço imagético (da história).

21
“Tempo homogêneo”, pode ser uma categoria da análise fílmica. Aí, a obra de arte se mostra crítica ou emancipadora do ponto de vista da refuncionalização.

22
A narrativa em Jurassic Park é estagnadora ou uma ruptura, crítica do tempo homogêneo?

23
Jurassic Park é uma narrativa instrumental ou uma crítica da linguagem fetichista?

24
Arte cinematográfica: profetismo revolucionário, fantasmagoria antifantasmática?

25
Cinema catástrofe: fantasmagoria da histórica leva a sociedade burguesa a confrontar suas contradições idealisticamente. Parece que só Kirsten Durnst entendeu o final de Melancholia.

26
O cinema é o inconsciente histórico da sociedade burguesa. O cinema é a representação fantasmagórica das relações sociais da nossa época. Cinema: uma história a contrapelo?

27
A arte cinematográfica ou cinema de massa, com representações que projecionam o imaginário tecnológico, revelam o cotidiano através das forças produtivas. Wall Street around the world. Conspiração Globo Filmes.

28
A arte tecnicamente reproduzida não deve ser entendida como esoterismo, mas como refuncionalização.

29
A homogeneidade histórica (a história universal) é a consolidação da barbárie.

30
Aproveitamento de material ou técnica de análise: o filme é um documento da cultura e um documento da barbárie.

31
O cinema de God-Hollywood que ilustra “teses sobre a tendência evolutivas da arte nas atuais condições produtivas”, revela as contradições fantasmagóricas do espaço imagético.

32
Há criatividade ou reificação na linguagem cinematográfica? Como pensar cientificamente a partir do cinema? Pensando a narrativa cinematográfica como história a contrapelo.

33
Em termos operatórios a apocatástase fílmica interroga o cinema como objeto de arte refuncionalizado.

34
O cinema no século XX corresponde às Passagens de Paris no século XIX. Imagens da fantasmagoria da época.

35
O espaço imagético da modernidade é uma mitologia a ser decifrada.

36
A mídia é um espaço imagético fantasmagórico.

37
Ao triunfo da racionalidade técnica, com a criação de uma segunda natureza, corresponde à existência arcaica. Mais bárbaro mais racionalizado mais naturalizado. Naturalização do mito.

38
O capitalismo cria fantasmas que batem à nossa. Tanto faz se Mickey Mouse ou vampiros vegetarianos. Globalização: “Os liberais tem a mente tão aberta que o cérebro deserta”.

39
Eu chamaria de pedagogia dos espaços imagéticos a política de decifrar a mitologia da modernidade. O conceito de refuncionalização possibilita outra percepção das novas atribuições dadas á reprodução da obra de arte.

40
Método: como olhar a obra de arte? Com o olhar da obra de arte funcionalizada, com novas atribuições dadas ao objeto artístico: educação, comunicação, informação, documento, barbárie, diversão, distração, difusão maciça, propaganda, publicidade.

41
O cinema é por sua própria natureza antropológico na medida em que não lhe é estranha a possibilidade de representar qualquer momento cultural da história do homem, no espaço e no tempo, com um envolvimento da percepção bem superior às formas anteriores de narração.

16/10/2011

Leonardo Carmo
Fonte: Via Política: Livre Informação e Cultura 

domingo, 16 de outubro de 2011

Hollywood Sem Filtro


Leonardo Carmo




Eu não sei quem colocou o
Buraco negro no Universo
Ou quem tirou a gravata
Do verso
Se o Bill Halley ou o
Billy Preston

Eu não sei se penso como o
Henri Bergson ou se toco
Como George Harrison
Se eu mostro para ela
A dor do Jim Morrison
Ou a dança do Michael Jackson

Seu eu ouço o quatro três três
Do John Cage ou curto um
Solo do Jimmy Page

Se eu luto como Asterix
Obelix
Ou se me invento como
Jimi Hendrix
Se morro como gladiador
No Coliseu ou se me mato
como a Julieta do Romeu

Eu não sei se entro numa tela
De Hieronymus Bosch
ou apaixono pelas pernas 
da Pina Bausch
Se eu transcendo no sagrado
De J. Sebastian  Bach ou se caio
No frevo com a Lady Gaga

Se eu curto o Spielberg do repórter Tintin
Arte sem aura como em Walter Benjamin
Se anti-romântico nada Errol Flynn
Ou homo sapiens do Setor Bonfim
Camponês errático rico em Pequim
Pescando na usina sonora do Rammstein

Eu não sei se filho de ladrão
Ou de prostituta só sei que
Nunca um  burguês
filho da puta

nelson leirner ou Onirokitschcrítico

      O filme sobre Nelson Leirner é o terceiro de uma série de cinco que martelam a tecla que desafina o coro dos contentes. O primeiro, Daquele instante em diante, de Rogério Velloso, trata de Itamar Assumpção, cantor, compositor abusivamente livre e libertário, intragável pela e para a miopia da indústria fonográfica que engessa a programação colonizada das emissoras de rádio do país.
     O primeiro, Daquele instante em diante, de Rogério Velloso, trata de Itamar Assumpção, cantor, compositor abusivamente livre e libertário, intragável pela e para a miopia da indústria fonográfica que engessa a programação colonizada das emissoras de rádio do país.
Em seguida veio Ex – Isto, direção de Cao Guimarães, perigoso e necessário exercício de narrativa fílmica ancorado na obraCatatau, do poeta Paulo Leminski. Em trópicas e tórridas terras, o ator João Miguel, na ambicionada representação de Renatos Cartesius, num Recife banhado ao reggae e em pipoca moderna.
      Agora, é a vez de Assim É, Se Lhe Parece, direção de Carla Gallo, belo documentário que rodopia em torno desse “cacareco ambulante”– se essas palavra o definem – que é o artista Nelson Leirner.
      Outros filmes anunciados nesse projeto e ainda não lançados,  referem-se ao diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Correa – por sinal diretor entre outros de 25, co-dirigido por Celso Luccas – sobre a Revolução em Moçambique, e a Rogério Sganzerla, diretor de filmes experimentais, e cuja fita mais conhecida e discutida é o célebre O Bandido da Luz Vermelha.Os seguidores da série Iconoclássicos esperam ansiosos por essas películas que também fogem do esquema da conspiração mercadológica em voga no cinema brasileiro atual.
      Estes filmes seccionam o olho do espectador viciado no ópio de imagens e sequências que narram histórias. Desencanto, desagrado, desafio, é o que há nestes filmes. Não são espetáculos artísticos, alta costura estética, as obras e os seus autores. Talvez não passem de pura burla, e aí está o segredo. Mas, todos tratam de gente de carne e osso que produziram canções, escritas, instalações, invenções num tempo guerra, e a pior destas batalhas chama-se consumo, consumismo.



Nelson Leirner

      Ao rever pela terceira ou quarta vez Assim É, se Lhe Parece, fiquei com a sensação que a cineasta Carla Gallo vai merecer da crítica o troféu abacaxi. Mas ela merece. Sem endeusamento ou fissuras intelectuais, a câmera sob a sua direção dá voz ao vento a esse camelô do insólito que é Nelson Leirner.
      Aos críticos especializados no cinema e nas artes plásticas eu diria que Carla Gallo coloca sutilmente questões que vêm sendo debatidas desde o ensaio da reprodução da obra de arte, do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940).
      À moda acadêmica e para ancorar o meu argumento e passar por menos ignorante, há no filme uma bela sequência onde Nelson Leirner mostra um livro de Paul Klee afirmando que para ele tudo começou ali, numa percepção que a arte pode ser também o caminho do não-saber. Sem confundir isso, claro, com o ódio ao saber seja pelas elites dominantes, seja pelos recém-chegados ao poder.
      Ou seja, o filme coloca direto: onde encontrar a diferença entre uma obra de arte e uma mercadoria? Sem fazer disso uma tese, Carla Gallo deixa a câmera fluir nas pequenas observações de Nelson Leirner, que coloca de modo arguto e afetivo, racional e provocador, que a Monalisa e um sapo do Saara, esse camelódromo do Rio de Janeiro, andam no mesmo pé.
      O pinguim de geladeira e um original de Van Gogh, reduzido agora a um poster, ambos foram assimilados pelo consumismo e mais do que nunca pede-se aos apreciadores de obras de arte que saibam olhar e devorar o que está disponível no grande mercado das artes.
Ou é uma enorme lona de feira ou uma esfiha de carne, para André Abujamra. Nada mais antigo que a novidades e nada mais desafiador que o senso comum. A mim pareceu que este documentário passeia pelo Onirokitsch, termo criado por Walter Benjamin para falar deste  “caminho direto à banalidade”. Eu diria, com respeito, que Nelson Leirner toma a arte, este belo príncipe, e o transforma em sapo. Operação delicada esta.
      Ao Louvre, Nelson Leirner responde com um passeio pelo Saara. Aos leilões da Sotheby’s, Leirner responde com uma caminhada pela Rua 25 de Março. Mas, o que há de mais encantador neste filme de Carla Gallo é o humor. Nesse sentido é um antídoto contra a suposta inteligência do humor televisivo.
      O filme tem um frescor, uma ironia do não-confronto, próprios, talvez, do Nelson Leirner. Um filme anti-filme. Um artista do sagrado, mas não da sacralização. Obras cavadas no banal, mas que não celebram a banalização ao contrário de muitos “colecionadores”, como é pontuado no filme.
      Carla Gallo não pretendeu ser didática, esclarecer, explicar para o espectador o sentido e o significado da obra de Nelson Leirner. Não estamos diante nem de um maldito nem de um gênio acessível aos iniciados.
      A obra de Nelson Leirner fala por si mesma. E, penso, uma das belezas deste filme é que Carla Gallo não falou pelo autor, e este deixou que seu trabalho falasse por si mesmo. Maravilha de câmera iconoclássica.


11/9/2011
Leonardo Carmo
Fonte: Via Política: Livre Informação e Cultura

Poemas da Ponte

Poema da Ponte I 
Leonardo Carmo
não preciso de olhos para vê-la
nem mãos para tocá-la
eu a vejo no desejo
e cruzamos olhares
numa ponte da marginal
vc com sua camiseta
os rubis cintilantes
dentro, pulsando instigantes
seu andar elegante
e eu sonho com
sua concha
não preciso de lábios
para beijá-la
sienna miller
ou eva green
eu a beijo na tela
do cotidiano
onde fito sua pele
de teatro, de poema,
de cinema
e vc me cavalga
nua lua abusada
lambuzada
das nossas salivas
virtuais. 
Poema da Ponte II
Leonardo Carmo

não preciso de olhos para vê-la 
nem mãos para tocá-la 
eu a vejo no desejo 
e cruzamos olhares 
numa ponte do tamisa 
vc com sua camiseta 
os rubis cintilantes 
dentro 
seu andar elegante 
e eu sonho com 
sua concha 
não preciso de lábios 
para beijá-la 
sienna miller 
ou eva green 
eu a beijo na tela 
do cine-cotidiano 
onde fito sua pele 
que me arde e queima 
e vc me cavalga 
nua lua abusada 
lambuzada 
das nossas salivas 
virtuais.

Mande

Leonardo Carmo


mande uma mensagem
ou um beija-flor
um um beijo-flor
mande uma serra dourada
mande as águas araguaias
e as serras goianas
mande nossas noites
de luar e sertão
uma modinha de joaquim camargo
a prosa deliciosa da regina lacerda
o sertão só tem entradas
não tem saídas
mande a beatle song
mande um filme que vc curta
mande uma goiaba vermelha
mande um alfenim de vila boa
mande um caminhada vagabunda
em goiânia
mande suas mãos o mapa em suas mãos
mande sua amizade, carinho, beleza, charme
mande uma nova da camille paglia
mande seu convite de formatura
mande para eu ver seu rosto e o da turma
mande pardais mande rolinhas mande araçás
mande a rua 3 às seis da tarde
a terra treme a terra geme a terra vibra
boçais dominam a terra no irã no vão do paranã
em goiânia, na tanzânia, em israel, nos eua
mande noticias.

sábado, 15 de outubro de 2011

A Ciência na Crítica do Cinema

Luiz Rosemberg Filho - colagem


Ptolomeu, Copérnico e Newton criaram uma imagem do universo que explicava o mundo em que vivemos e o lugar do homem nele. Qual a imagem do universo hoje? 


A ordem é ampliar a área de consciência. Chama-se crítica científica do Cinema o projeto descritivo de filme inspirado nos novos paradigmas da Ciência.

Esse modelo de análise postula uma epistemologia não cartesiana para a pesquisa do filme e recorre à Matemática do Caos e à Física Quântica para uma intelegibilidade do Cinema, encarado aqui como algo que transcende a própria noção corrente de arte.

A construção da crítica cinematográfica – instrumental teórico e operário – insere-se no espaço da geometria não-euclidiana e da Teoria Geralda da Relatividade. Ou: alguns filmes são cartesianos, outros newtonianos e outros einstenianos. Fitas como Matadouro Cinco, direção de George Roy Hill (1972), baseado na obra de Kurt Vonnegut Jr., embola os gêneros comédia, ficção científica, drama e guerra, ou O Exterminador do Futuro II, de James Cameron (1984), que rende frutos até hoje, podem ser analisados em termos de miragem gravitacional.

Claro, não se trata de reduzir o cinema a uma subseção das Ciências Duras. Trata-se de não separar ciência e arte, e estudar as probabilidades das utilizações de equações matemáticas na interpretação de imagens cinematográficas. A síntese emergente não excluirá razão e imaginação, abordando cinema como uma ciência artística.

Luz é o resultado de um movimento vibratório rapidíssimo capaz de provocar em nós a sensação de visão. É bastante aceitável definir luz como a espécie de energia que nos permite ver. O instrumental para uma crítica contemporânea do cinema pode estar tanto para a física quântica quanto para a psicanálise.


Os planos se movem como quarks, partículas elementares que revelam as propriedades da matéria fílmica. Sequências podem ser analisadas em termos de um quark charmbeatuy, ou top. A finalidade desta aproximação é minimizar as dificuldades de escrita e verbalização do filme, compreendido como um fenômeno físico-químico plasmado no celulóide.

A eficácia da técnica de análise do filme ancorada na filosofia das ciências é questionável. Cada época inventou seu próprio universo. Ptolomeu, Copérnico e Newton criaram uma imagem do universo que, a um só tempo, explicava o mundo em que vivemos e o lugar do homem nele. Qual a imagem do universo hoje?

Será que as “descobertas” científicas efetivamente revelam como a natureza funciona, ou, ao contrário, nossa compreensão do universo não será senão um constructo de ideias, uma criação de nossa habilidade para descrevê-lo e interpretá-lo?

Nesse sentido, a crítica científica do cinema é uma construção de dados da imaginação e da razão para uma teoria da filmologia. O cinema – máquina que faz o pensamento voar segundo Eisenstein – levará o homem do século XXI para um novo ciclo de viagens – realidades intergalaxiais – onde a questão do sentido e significado do que é humano e a consciência histórica dele permanecerá desafiadoramente em aberto.

10/10/2011 

Leonardo Carmo
Publicado em Via Política: Livre Informação e Cultura

Apontamentos sobre historiografia e cinema

Luiz Rosemberg Filho - colagem
1
Marc Ferro, historiador francês, propõe em Cinema e História (Ed. Paz e Terra, 2ª Ed. 2010), o filme como objeto de pesquisa histórica. A base do método está no que ele chama de visível e não-visível nas imagens. A história no cinema é uma contra-história ou uma contra-análise da sociedade.

2
Contra-análise: fronteira no fotograma do visível e do não visível. O filme é observado não como obra de arte, mas como uma imagem-objeto, cujas significações não são apenas cinematográficas.

3
Para Marc Ferro, o cinema vale pelo que testemunha, pela abordagem sociohistórica que autoriza. Como o filme se relaciona com a sociedade que o produz? De qual realidade o cinema o cinema é a imagem? Sociedade e filme são o mesmo.

4
Mediação: escrita cinematográfica da história, escrita histórica do cinema. A construção da historiografia na perspectiva fílmica confere à imagem o estatuto de suporte para a produção do conhecimento. Historicidade imagética: racionalidade e estética.

5
O filme como fonte de pesquisa histórica abre novos arquivos aos pesquisadores e enriquece a visão do espectador-pipoca, para o que se poderia chamar alfabetização pelas imagens e sons, a história informada pela arte cinematográfica.

6
Ferro pergunta: em que medida o documento filmado – mais que o escrito – explode o campo tradicional da investigação histórica? No que ele pode contribuir para criticar ou reforçar a concepção dominante da História ensinada?

7
Um aspecto fundamental do filme como contra-análise apoia-se na produção. O filme de ficção como testemunho histórico. Pergunto: por que o não-visível também nas superproduções? Outubro, sim. Avatar, não? Hermenêutica do filme.

8
Exemplo: O paleontólogo e biólogo evolucionista Stephen Jay Goud, aponta falhas em O parque dos dinossauros, no livro Passado Imperfeito – a História no Cinema (organizado por Marc C. Carnes, Ed. Record,1996) que ainda assim não eliminam a ideia de história da ciência que a película arranha.

9
Nenhum parque segura o T. Rex, versão pré-histórica do Tio Sam. Filmes como Doce Vingança e Professora sem Classe são contra-análise da sociedade e histórias idealizadas da América. O método de Marc Ferro parece superar os limites da produção quando se trata da construção, percepção, interpretação do não-visível no filme.

10
Crise do petróleo em A Comilança, de Marc Ferreri; crítica do trabalho em Crônica de um Industrial, de Luiz Rosemberg Filho.Comendo os Ricos, de Tony Richardson, e Como Era Gostoso o Meu Francês, de Nelson Pereira dos Santos: história e antropofagia.

11
Marc Ferro. Pierre Sorlin. Robert Stam. Tom Gunning. David Bordwell. Catherine Russell. Robert Rosenstone. Pesquisadores afinados com a escritura histórica do filme e a escritura fílmica da história.

2/10/2011 

Leonardo Carmo
Publicado em Via Política: Livre Informação e Cultura

A árvore da melancholia



Neste filme de Lars Von Trier a Terra vai para o saco. E Francis Fukuyama vai junto. Aliás, por onde andam minhas pipocas?

Lars von Trier, com o seu Melancholia, estimula debates apaixonados sobre o sentido e o significado do filme. Para alguns, ele se revela epígono da cineasta Leni Riefenstahl (1902-2003), famosa pelos filmes de propaganda que realizou para o Partido Nacional-Socialista Alemão. Para uma parcela da mídia, as declarações do diretor afirmando sua simpatia pelo führer estão no DNA da fita. 

O que eu quero dizer é que para produzir um filme ‘nazista’, como afirmaram certos críticos, o diretor precisaria contar com o apoio de produtores favoráveis a essa ideologia. Para quem analisa filmes, os dados sobre a produção são indispensáveis. No caso de Melancholia os créditos vão para a Dinamarca, Suécia, França, Itália, Alemanha. Lars Von Trier teria conseguido nesses países encontrar um celeiro de endinheirados produtores nazistas? Isso não parece provável. 

Essa ideia do filme como uma cenografia wagneriana celebrando o reich de mil anos parece frágil, até porque com aquela colisão dos planetas o IV Reich viraria poeira cósmica. Penso, com a minha filosofia de galinheiro, que Hitler ou seus sucessores não se sentiriam muito à vontade sabendo que a Terra seria engolida por um planeta alienígena. E não sabemos se Leni Riefenstahl aprovaria, em termos cinematográficos, claro. 

Outros se debruçam sobre o filme com instrumentos mais precisos. Trata-se de uma metáfora sobre a solidão cósmica. Sobre o nada que finalmente é existir quando se abre a mão da transcendência. Outros nadam na etimologia do termo. Ora o aproximam da depressão, ora o afastam como algo mais nefasto ainda. Nadando entre estas análises de críticos cinematográficos, psicólogos, psicanalistas, filósofos, tenho minha ansiedade potencializada, o que faz o dono da farmácia próxima de minha casa gostar do filme pela compra de ansiolíticos que tenho feito nos últimos dias. 

Penso sempre em um filme como um enigma, um objeto a ser estudado coletivamente. E isso não é original. Deixando-me levar idiotamente pelas imagens de Lars Von Trier suspeito que ele fez uma ironia fílmica. Não um disaster movie - pode ser que ele ainda aprenda com Hollywood - como foi catalogado, mas uma ficção sobre o que pode ser uma experiência estética e histórica do fim do mundo antes do fim. Som. Imagem. O mundo devorado pela câmera nazi de Lars Von Trier. Será? 

Um filme para ser visto sem ser devorado pelas pipocas. Sem a ambição de dar a última palavra sobre ele, reivindico aqui o direito de comentar o encantamento em mim exercido pelo ritmo do filme. 

Como uma obra de arte é sempre aberta - já li isso em algum lugar - quero sustentar algumas idéias mirabolantes sobre a fita. Uma delas é que a primeira parte, a do casamento, pode ser uma metáfora da destruição da ordem burguesa assentada num sistema planetário ancorado nos sagrados votos do matrimônio, na celebração da família, no direito à propriedade. 

A partir das primeiras imagens - as sequências no interior da limusine branca - o universo já se estreita. É até meio besta - e se o diretor disse que simpatiza com o nazismo, então ele é uma besta mesmo. As sequências da limusine já são um prenúncio do fim, a vida - que não se sabe exatamente o que é – que diminui, encolhe, miniaturiza. Minha vontade de andar de limusine passou. 

O existir no des-conforto da limusine, o que um espectador atento poderá observar, será cortada, talhada, salva, talvez, pelo canivete dado pelo sobrinho Leo. Uma noiva, um canivete, um inocente. Ali está, logo no início do filme, a salvação. Ela está ali naquela lâmina, e todo mundo sabe, na hora do sufoco, o que um canivete pode fazer, não é mesmo? 

Mas ali há, talvez, uma outra chave: para Leo, a tia Justine é a Tia Quebra-Braços. Essa tia atormentada, melancolizada, deprimida, enclausurada em si mesma, é um osso duro de roer. Ela dá conta de qualquer parada, atrás da fragilidade temos uma heroína às avessas. Claro, Justine não é nenhuma mulher maravilha, não salva a si mesma, enlouquece a todos e tudo a sua volta, mas, talvez por isso mesmo, há algo em que se possa confiar nessa mulher. Ela, a Tia Quebra-Braços. Pergunto: quantos têm uma tia assim? 

Depois Justine gosta de cavalos. O que não é pouco. Em algumas sequências o belo cavalo simplesmente recusa a atravessar uma ponte pequena e estreita na propriedade de John e Claire, cunhado e irmã de Justine. Ora, o sentido da cavalgada naquele plano onde a câmera como que voa para nenhum lugar, aquele passeio para tirar Justine da indolência parece atirá-la num fosso sem fundo. O cavalo não compactua com a fuga. Não tem para onde ir. Não há esperança. Não há salvação. A inquietação dos cavalos no estábulo lembra ao espectador que alguma coisa terrível vai acontecer. Seriam os cavalo melancólicos ou menos tolos que seus donos? 

Limusine/canivete/cavalo. John, o cunhado e astrônomo amador, parece, entre as vindas e idas de Justine, o único a saber o que realmente acontecerá. Mas a crença de John que Melancholia passará pela Terra assim como passou por Vênus, sem causar estrago algum, parece assentada em valores pecuniários. Ele reclama do alto custo da festa, sente os dedos doerem ao pagar o taxista quando Justine retorna para sua mansão e, espertamente, compra provisões e equipamentos de emergência para que ninguém fique no escuro com a aproximação do Planeta. “Jack Bauer” não se dá muito bem neste filme. O homem que salva o império americano (na TV) é a primeira baixa que temos no filme. Mas, quem pode condená-lo, julgá-lo? E como cunhado ele é um chato. Merece ter uma Justine na sua vida. 

Melancholia seria uma zombaria com Armageddon? Neste filme, Bruce Willis - com outros cowboys - salva a Terra da colisão com um asteróide (parece que bem maior que o planeta do filme de Lars Von Trier). Faltou grana para a produção? Leni Riefenstahl teria uma solução estética e técnica melhor, mais apurada que o Lars Von Trier? 

Estas fitas que atrapalham a minha comilança de pipocas durante a projeção me dão um troço. Abobalhado, lembrei-me de A Estrada Perdida, do David Lynch. O cosmos é uma estrada perdida. O fato é que de uma maneira hollywoodiana ou existencialista o tema do fim do mundo alimenta a indústria cinematográfica e a existência consumista das pessoas. Sem isso os livros de auto-ajuda não teriam muita funcionalidade. Parece que Lars Von Trier filmou um Heavy Mental, e como ele era (ou é) um homem de dogmas, intelectuais param para pensar em seu filme. E a melancolia talvez seja a maçã de Sodoma. E o filme talvez seja sobre uma maçã. A maçã que abriu nossos olhos. E trouxe suor aos nossos rostos. E afinal de contas, para quê? 

A festa de casamento é animada. Quem se lembra da trilha dessas sequências concordará. Como é que esse dinamarquês foi colocar “La Bamba” na trilha? O David Lynch colocou “Insensatez”. Talvez ele tenha colocado por isso: para bailar é preciso um pouco de graça. Ou é o diretor no sufoco querendo segurar um pouco mais o espectador sem pipocas na cadeira do cinema? Nessa sequência eu trocaria o John Hurt pelo Jerry Lewis, isso para não dizer que não falei dos talhares de ouro no bolso do pai da noiva. 

Outro plano que me deixou intrigado: o banho de Justine. Nua sobre as pedras oferecendo o seu monte de Vênus ao insaciável Melancholia, que parece saborear o oferecimento. É só prestar atenção na fotografia. Nem me lembrei das pipocas, quedei-me contemplativo, melancólico talvez. Disseram-me que aquela cena é o próprio diretor piradão que não conseguia ele mesmo entrar na banheira de sua casa. Depois dessa sequência comecei achar qualquer banheira muito pequena. Muitos, no êxtase sexual, sentem a Terra tremer. Justine vai além: ela sente a Terra sendo engolida. E ela é safada e poética (safada, já havia transado com o aprendiz de publicidade... não dá mesmo para confiar nos poetas, ao menos nos verdadeiros). 

E temos a irmã. Um canivete cego. O esnobismo de querer celebrar o final dos tempos com champagne e a Nona de Beethoven, asperamente impedida por uma Justine pés-no-chão. Não sei se o filme é nazista ou se prova que o Prozac já era num caso destes. Mas se surgir um planeta por aí (não um desses produzidos por Hollywood ou Lars Von Trier), mais do que provisões e ansiolíticos precisaremos é de um canivete e uma Tia Quebra Braços. Neste filme, a Terra vai para o saco. E Francis Fukuyama vai junto. 

Porque se um houver un gran finale cósmico não em termos cinematográficos, mas em termos reais (seja lá o que isso for), só haverá uma saída: a caverna mágica! E quando você entrar nela, adulto ou criança, feche os olhos e fique de mãos dadas com sua “Tia Quebra-Braços”. Seja lá como, Lars Von Trier deu ao cinema um dos mais belos unhappy end. E no final não sabemos se abrimos ou fechamos os olhos. 

Ainda não assisti A Árvore da Vida, de Terrence Malick. Outro furor cinematográfico neste a gosto sem Glauber. Pode ser que um dos galhos dessa árvore seja a melancolia. 

27/8/2011 
Leonardo Carmo

Publicado em Via Política: Livre Informação e Cultura

O fantasma da revolução nas barricadas do cinema

Luiz Rosemberg Filho - colagem



Filmes mostram que se a cultura de massa é uma fonte de fantasmagoria do mundo social, ela é também uma fonte de energia coletiva capaz de superá-la. 


O cinema como escrita política da história pode ser conferido em filmes não recentes nas telas, mas permanentes na memória da liberdade e do sonho. Refiro-me às produções: Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci, em 2003, e Edukators, de 2004, direção de Hans Weingartner. Ambos mergulham no mundo de sonho da cultura de massa, e discutem, no passado e no presente, o problema da ação que pode desencadear o "despertar coletivo" enquanto sinônimo de uma conscientização revolucionária de classe.

Revivendo a visita do fantasma da revolução ou do que dela sobrou nas barricadas do cinema, e tão explosivo quanto Bertolucci e Weingartner, só mesmo Lukas Moodysson, com Para Sempre Lilya, 2002, os bisnetos da Revolução Russa na lama do socialismo num lugarejo perdido da Estônia. Só os anjos sobrevivem ao lamaçal da História soviética.

Os Sonhadores relembra através de três estudantes – Eva Green, Louis Garrell e Michael Pitt – o relâmpago revolucionário do maio de 1968. A descoberta da arte cinematográfica coincide com uma crítica radical do ambiente político e social daqueles anos. Entre Godard e Mao Tse Tung, Buster Keaton e Charles Chaplin, aqueles jovens pareciam não possuir outra alternativa histórica a não ser a de transformar o mundo.

A figura carismática do filme é Isabelle, a Vênus de Milo da nova sociedade que junto com o irmão marcha para as barricadas parisienses e atira coquetéis molotov contra a polícia. A consciência crítica desse momento fica por conta do estudante americano que primeiro envolvido pelo casal de irmãos e, depois, crítico diante da postura deles, percebe no calor da luta das ruas do Quartier Latin, que a batalha já estava ganha pelo sistema. O filme já prenuncia a cara do fantasmagórico american way of life.

A sequência no quarto coberto com cartazes revolucionários e palavras de ordem remete ao filme A Chinesa, 1967 de Jean-Luc Godard, onde a metáfora de Mao Tse Tung como diretor cinematográfico é uma lição política audiovisual de valor nos dias atuais. Quem tem pretensões cinematográficas não pode passar batido por Godard.

Entretanto, quem dirige Meia Noite em Paris, 2011, é Woody Allen e não Dziga Vertov. E a Paris em chamas no cinema é a Paris charmosa dos anos 1920, memórias de um diretor americano que faz um filme velho, para um público que à ousadia se acomoda nos clichês.
Em Os Sonhadores, o estudante americano é lúcido em relação aos episódios da França, é conformista ou realista no que diz respeito ao próprio contexto dos Estados Unidos naqueles mesmos anos. Seria ele o futuro pai do herói americano possíve, Forrest Gump?

Depois que as barricadas do desejo foram vencidas pelas bombas de gás lacrimogêneo, o futuro não será mais dominando pela paz e pelo amor de uma sociedade sem classes. Esta parece ser uma das possíveis leituras no filme Amantes Constantes, 2005, em que o diretor Phillip Garrel evoca o Maio de 1968 na atmosfera das colunas de fogo da poesia de Charles Baudelaire.

O futuro será o da União Europeia, ambiente do ensaio político do Edukators – Seus Dias de Fartura Estão No Fim, onde três jovens acenam para uma platéia devorada por pipocas que as melhores ideias ainda sobrevivem e podem fazer a diferença. Daniel Bruhl, Julia Jentsch e Stipe Erceg têm aquele frescor, beleza e poesia que não se encontra nas academias de malhação. Novamente é a figura feminina que desencadeia os momentos mais radicais do filme.

Julia Jentsch protagoniza a sedutora Jule, namorada e amante, amigos que invadem mansões em Berlim, não para roubar, mas, para dar o ultimato na burguesia dominada pelo espetacular fascínio proporcionado pela economia do euro. É neste e outros aspectos que as duas fitas se encontram num exercício de construir e refletir estratégias políticas do passado e do presente. O triângulo alemão não possui as ilusões do trio francês.

Se o jovem americano se afasta dos amigos no decisivo momento do confronto nas barricadas parisienses, os amigos alemães se reconciliam e viajam para o Mediterrâneo para destruir as torres que controlam as transmissões televisivas na Europa. Edukators é uma crítica cinematográfica da chamada economia global. Os educadores buscam formas de combate onde a esperança de transformação possa ser operada para além do livro vermelho ou das velhas ortodoxias políticas.

Esse cinema de maciça força poética parece manter aquele desejo de despertar do mundo do sonho de si mesmo. E mantém vivas as ideias e práticas situacionistas de Guy Debord, a quem essas fitas poderiam ser dedicadas. Esses filmes mostram que se a cultura de massa é uma fonte de fantasmagoria do mundo social, ela é também uma fonte de energia coletiva capaz de superá-la.

17/7/2011 

Leonardo Carmo
Publicado em Via Política: Livre Informação e Cultura

Glauber Rocha contra o Leão de Hollywood




Ele profetizou a crise econômica mundial que ocupa as manchetes dos principais jornais. O Primeiro Mundo está descendo o degrau para o Quinto Mundo. 


Glauber Rocha, cineasta baiano (1939-1981), morreu num mês de agosto, vendo um Brasil mergulhado no zero filosófico, cultura, estético, político. 


Ele usou o cinema para matar Deus e o Diabo. E fez uma reforma agrária audiovisual em Der Leone Has Sept Cabezas, mostrando no cinema que a terra é do homem mesmo que este homem ainda não tenha historicamente nascido.


Sua obra fílmica é um dos exemplos fundamentais do que se entende por arte cinematográfica. Ciência artística + arte científica = Glauber Rocha.

Glauber é o Santo Guerreiro contra o Leão de Hollywood. Mas não pense que ele tinha uma visão estreita do processo cinematográfico e do cinema americano. Na década de 70 ele registrou em carta a nova onda que começava em Los Angeles.


Na época, o ícone era Easy Rider, de Dennis Hopper e Peter Fonda. Isso veio dar em Steve Buscemi, Eric Stoltz,Tim Roth, Jay Rosenblatt, Todd Solodz e Miranda July. Do underground de Andy Warhol ao overground Gummo, de Harmony Korine, Glauber compreendeu o som e a fúria do cinema americano.


É assim, pode-se pensar, que ele gostaria de ser lembrado. Como um cineasta que utilizou o cinema para conhecer e transformar a sociedade. A revolução é uma estética.


Qual o valor de seus filmes e da sua teoria cinematográfica? No livro Revolução do Cinema Novo (1981), publicado pela Embrafilme, ele observa que: "(...) os críticos mineiros discutiam a estética idealista de Croce, mas não citavam nem Walter Benjamin, nem Georg Lukácz: As intervenções do segundo em cinema são desastrosas". Essa frase de Glauber permite situar a importância de seus filmes e do seu pensamento intelectual para o Brasil, hoje.


As afinidades eletivas entre Walter Benjamin (1892-1940) e o cineasta é um campo a ser explorado. Disso vai resultar uma nova prática de filmes históricos. De narrar a história nos filmes e os filmes na história. Essas afinidades podem ser apontadas no descaminho como método, na dialética da alegoria, da tragédia do progresso como uma montanha de ruínas.


Glauber usou o cinema para decifrar mitos e dar cara à história. Nesse sentido, ele materializa na prática cinematográfica as teses de Walter Benjamin, que viu na tecnologia possibilidades de avanço educativo inclusive para as massas.


Teria ele lido o ensaio da reprodutibilidade técnica? Mesma que não, Glauber encarna a tese contida nesse ensaio da tendência evolutiva da arte na época de suas técnicas de reprodução. Tanto um quanto o outro desmistificaram o conceito do artista e do intelectual pairando acima das nuvens.


O diálogo enter GR e WB se mostra também no apreço do cineasta pelo método – distanciamento – do teatro brechtiano. Lembrando que Brecht e Benjamin foram amigos e juntos, elaboraram o conceito de "pensamento pesado", técnica para despertar o homem comum do terror e do sonho.
Nesse sentido, A$suntina das Amérikas, de Luiz Rosemberg Filho, está próximo tanto do pensamento pesado quanto da estética da fome.


Aliás, a crítica tem que rever A Idade da Terra, porque esse é o filme que representa o Brasil do século XXI, e não a anemia dos filmes brasileiro atual, que são televisivos e não cinematográficos. O cinema de Glauber é uma chuva seca, uma luta permanente contra o não-saber. Por isso, Glauber chamava o público e os críticos de teleguiados pelo Leão de Hollywood. Contra o colorido de um cinema colonizante, a luz solar no seco da caatinga.


As personagens Aldo (Francisco Milani) e Marinho (Echio Reis) deTerra em Transe são exemplos de intelectuais colonizados que combateram Glauber, que continua incomodando a mediocridade de supostos cineastas e suas conquistas no mercado.


Ele profetizou em Claro a crise econômica mundial que ocupa as manchetes dos principais jornais. O Primeiro Mundo está descendo o degrau para o Quinto Mundo. O Leão das Revoluções Árabes.
O cinema de Glauber antecipou o transe europeu. Em Cabezas Cortadas ele degola a Cabeça da Santa Inquisição e os ditadores latino-americanos. A fome vai cortar a cabeça do FMI, das bolsas de Tóquio e Berlim e dos lugares chiques de Amsterdã e Paris. Aliás, já está cortando. O capitalismo está entrando numa quarta-feira de cinzas.


O cinema de Glauber é uma estética da superação da alienação do brasileiro em relação ao próprio país. Sua filmografia exibe um Brasil visto pelos olhos de José Lins do Rego, João Guimarães Rosa, de Euclides da Cunha, de Paulo Prado e de Darcy Ribeiro. O cinema dele apresenta a questão: como viver a vida verdadeira num mundo falso? É por isso que podemos pensar nele como Corisco, carregando um papa-amarelo que era uma câmara 35 milímetros.


Já nos anos 70, Glauber Rocha era pós-URSS. Ele viu o Muro cair antes de O Anjo sobre Berlim. Glauber antecipa o Adeus, Lenin. Glauber queria filmar DAS KAPITAL. Num ousado lance da dialética dos extremos, Glauber denunciou o ABC engolido pelo fisiologismo liberal da pseudo Alvorada de Brasília.


A pré-história das nações civilizadas confirma suas teses, profecias, intuições, alucinações. O cinema de Glauber é um novoconstructo mental. É preciso que o homem se reinvente para curtir esse cinema.
Rachel Gerber em O Mito da Civilização Atlântica nos lembra que em Glauber "o cinema é uma antropologia moderna, e também psicanálise da história e da cultura, podendo ter visão totalizante do homem no espaço e no tempo".


Nele o cinema é uma escrita política que explode o continuum histórico. O recado de Glauber para o Brasil e para o mundo é: "enquanto reinar a tirania não existirá a felicidade".

13/8/2011 
Leonardo Carmo