quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Fantasma do Amor

A filmografia de Gus Van Sant  segue em pelo menos alguns de seus filmes aquilo que poderemos chamar de narrativa dos desgarrados.

Annabel e Enoch: pássaros enamorados

   
Personagens " outsiders " como os que aparecem em "Drugstore Cowboy", 1989, " Garotos de Programa", 1991, " Até as Garotas Ficam Tristes", 1993 e " Elefante", 2003 e " Paranoid Park", de 2007, exibem seres deste outro mundo que mora ao nosso lado no cotidiano e que parecem mais reais e ganham maior visibilidade se mostrados no cinema.
   Penso que num certo sentido estes filmes - para não mencionar outros do diretor - tem a mesma historia. Seres desajustados o suficiente para não aceitar o "establishment", viajantes em busca do gozo e do amor,  das drogas e dos paraísos artificiais mas quase sempre impossibilitados de viveram toda a potência de seu afeto.
   Com  " Restless - Inquietos ", 2012 Gus Van Sant torna mais delicada essa galeria gente insólita com Enoch (Henry Hopper) um adolescente que não se conforma com a perda dos pais num acidentel de automóvel e Annabel ( Mia Wasikowska) uma jovem que tem um tumor no cérebro e data certa para morrer. Há quem diga que o filme remeta ao " Love Story - Uma História de Amor", 1970,mas, aqui a coisa é pior.
   Eles se conhecem num cemitério. E aí está o primeiro gesto insólito de Gus Van Sant. O amor nasce da morte, da contemplação das pedras de túmulos frios, o amor vem da região onde o sol nunca brilha ou nasce ou nem mesmo existe.  Não bastasse a aura de Enoch e Annabel, o diretor nos envolve ainda com o fantasma de  kamikaze Hiroshi (Ryo Kase) o único amigo do garoto.
   Começar um filme com " Two of Us", The Beatles e inserir imagens de Hiroshima conferem ao filme doçura e horror. É a balada de Lennon-Mccartney o primeiro petardo a ser atirado no ouvidos do espectador que assim é mergulhado numa viagem sem volta. Mais ou menos como diz o cartaz do filme: voce vive para que?
Vivemos para duas coisas: para amar  e morrer. Nesse entreato, a frivolidade que chamamos existência. Amorrer. Morramar.O tato com o qual é tratada a narrativa de Enoch e Annabel educa o senso, os sentidos, os sentimentos.  Fugindo do estereótipo da jovem em fase terminal e do romantismo barato, Gus Van Sant outra vez coloca o seu cinema a serviço de pensarmos as tragédias e dores cotidianas, pequenas catástrofes que felizmente escapam aos olhos dos mídias.
   A construção do afeto entre Enoch e Annabel é mediada pelo fantasma Hiroshi, uma espécie de barqueiro da morte, elo entre a sobrevivência de Enoch e a passagem de Annabel. Mas ainda aqui Gus Van Sant nos acorda de possíveis identificações entre o espectador e o filme. Enoch e Annabel como personagens reencenam sua fatalidade com a fina ironia daqueles que pensam poder escapar do que chamamos mundo dos vivos.
  O primeiro encontro - numa cerimonia funerária -. os passeios pelo cemitério, a paixão de Annabel pelo naturalismo de Charles Darwin, o apelido - Passarinho - que ela coloca no amante - o desenho feito no chão com o giz juntando os dois pássaros por toda a eternidade, desdramatiza qualquer emoção piegas que a estória por si só inspira.
   A morte não é vivida por Annabel de modo pesado. É algo que simplesmente irá acontecer. Assim, a cada sessão de transfusão de sangue, a cada exame que constata os limites da medicina, são vividos pelos dois como um acidente no percurso, o mesmo acidente que os colocou frente a frente ao se conhecerem.

Henry Hopper (Enoch) e Ryo Kase (Hiroshi)
vivos e mortos sem descanso
  
   Deliciosamente ironico, sutilmente bem humorado, essas duas personagens podem marcar o modelo romântico dessa nova década que se inicia. Ao representar seus próprios destinos na película, Gus Van Sant parece dizer no filme que não há outro caminho a não ser o da felicidade, mesmo quando ela nos apresenta temporária, curta, finita. O único modo de viver é amar. O amor é o que diminui nosso temor diante da morte.   
    Toda a dedicação de Annabel com Charles Darwin, seu esforço em classificar balas e doces para o seu próprio velório, a visita que ela e Enoch fazem ao necrotério do hospital, nada disso é vivido ou mostrado com morbidez, desespero. Enoch e Annabel são melancólicos, não abrem mão disso, mas, é essa melancolia que os alimenta a viver intensamente todos os momentos prosaicos de uma consulta médica, de um Dia das Bruxas, de atirar pedras nos trens, de desenhar pássaros e escaravelhos sob as árvores do cemitérios.
   Talvez se possa dizer que o filme recupere a obra de Roland Barthes - Fragmentos do Discurso Amoroso -, não no sentido de retomar o projeto literário mas no permanecer da pergunta: onde e quando termina o amor? O que é o amor?  Por que quando o encontramos ele chega inesperadamente ao fim?
   Hiroshi o kamikaze que não pode entregar a carta para a sua namorada talvez nos dê a resposta. Ele que morreu sem dizer adeus para a sua amada, é o fantasma que protege o afeto, o fantasma do amor e talvez o amor seja isso, uma sombra que acolhe a existência e um sol que testemunha a nossa morte.


Leonardo Carmo

2 comentários:

  1. Pergunta idiota e feminina: ela morre no final?

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  2. Ela sim, o amor não! Pode parecer idiota a pergunta, mas o que fica no contexto do filme é: afinal, o que é a morte ou, o que é morrer?

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