sábado, 15 de agosto de 2015

Cinema, história e histeria

Leonardo Carmo ,Especial para Opinião Pública

http://www.dm.com.br/opiniao/2015/07/cinema-historia-e-histeria.html
O cinema pensa ou é mero entretenimento? O que é pensar a partir do cinema? Existe algo que possa ser chamado pensamento cinematográfico? Como o cinema pensa a realidade? Um filme de ficção é uma fantasia sobre o real e um filme sobre política é um documento sobre real? Onde começa e termina a fronteira entre a ficção e o real em um filme de Jean-Luc Godard, por exemplo? Ao visualizarmos dinossauros – digitalizados, obviamente – na tela, que história podemos ver nesses animados parques onde diversão e horror nos domestica diante do terror cotidiano? Colocando em termos esquemáticos pensa-se o real de duas maneiras: ao modo do idealismo ou ao modo do materialismo. Sem problematizar o conceito de real que vai além das aparências e evidências da parede à nossa frente ou do sinal fechado, pensar é aceitar ou negar a realidade, isto é, aquilo que bate naquilo que chamamos consciência crítica ou senso comum.  Essa aceitação pode ser caracterizada como uma postura positivista na qual a realidade objetiva se impõe sobre o pensar com suas evidências, suas provas, seu caráter documental. Há identidade entre o pensamento e o real. O real pode ser desvendado pelo pensamento. Pensar a história por exemplo é pensar o real e há uma tradição fortíssima que se fundamenta na tese “ o racional é real” e impõe uma forma do pensar  que ocupa lugar de destaque e credibilidade nos meios acadêmicos, aparentemente o lugar de onde se pensa e se estabelece tanto o que é pensar quanto o que é real, realidade. Pensar, escrever, filmar a história é capturar aquilo que “aconteceu”. Do modo como existem pensamentos, existem cinemas. O cinema narrativo ou se quisermos um filme de trama armada com começo, meio e fim, o mais facilmente aceito pelo público, é considerado mesmo pelos cinéfilos colecionadores de DVDs, como o exemplo de cinema do qual as películas norte-americanas são canônicas. Os filmes que não rezam pela cartilha do cinema americano são considerados heréticos, curiosamente, Hollywood, dominada pelos negociantes judeus das imagens, é chamada de “ Meca” do cinema. A heresia cinematográfica é conhecida muitas vezes como cinema de arte em oposição a um cinema-mercadoria. Essa questão dos limites entre o que é um e outro cinema é infindável mas, o impulso para criar obras digestivas ou inovadoras mantém o cinema como objeto de discussões estéticas sejam intelecutuais ou amadorísticas. Sem esgotar o assunto ou dizer a última palavra sobre o assunto, queremos tratar de um cinema que o historiador Robert. A. Rosenstone no livro A história nos filmes, os filmes na história, chama de drama inovador. No entanto, para nós, pensar  o que aconteceu, da nossa perspectiva que é a perspectiva cinematográfica dos filmes de Luiz Rosemberg Filho, é negar aquilo que nos dado como o real, como o fato ou o acontecimento indiscutível. Pensar é negar o pensamento que se estabelece como verdadeiramente irrefutável. Esse é o modo negativo ou dialético um modo de pensar mediado pelo objeto que se pensa e as contradições dadas para que esse objeto possa ser pensado. Ou, dito de modo mais simples: pensar é negar a identidade entre a coisa, aquilo que se pensa e o real. A partir dessa breve introdução, uma espécie de nebulosa cinematográfica, queremos abordar o cinema como forma de uma dialética – uma forma de pensar que nega a identidade entre o racional e o  real – negativa que se expressa no conteúdo político e na matéria fílmica do cineasta carioca Luiz Rosemberg Filho, autor de um território cinematográfico desconhecido pela crítica e pelo público mas não pela censura política e econômica – a do Brasil pós 1964 e pós 1985 – merece no Rio de Janeiro  a exibição de parte de sua obra.
Objeto da Mostra “Rosemberg 70 –  Cinema de Afeto”, que entrou em cartaz  dia 16 e vai até o dia 28 (hoje) na Caixa Cultural do Rio de Janeiro, serão exibidos 41 filmes entre longas e curta-metragens do cineasta cuja filmografia talvez se possa denominar  “drama inovador”, seguindo a conceituação de Robert A. Rosenstone na obra A história nos filmes, os filmes na História, Editora Paz e Terra, 2010. Afeto é aquilo que afeta, que muda, que causa tanto conforto quanto desconforto, aproxima e distancia. Assim são os filmes desse cineasta que nunca fez concessão no sentido de facilitar comunicação com o público e encontra muitas vezes resistência dos próprios cineastas e críticos  quanto ao valor de seus filmes. Mas, por que isso? Nossa tese é que a dialética negativa que percorre a narrativa – a arte de contar histórias com começo, meio e fim – dos filmes de Luiz Rosemberg Filho choca-se com o bom senso do que é pensar o cinema e a partir do cinema. O cinema de Rosemberg problematiza os limites da arte cinematográfica e o seu alcance quanto ao real. O seu cinema  trata – entre outras coisas – da representação política da história e das formas dessa representação. Para contribuir com o esclarecimento do leitor, filmes como Lamarca, 1994, de Sérgio Rezende e O Bom Burguês, de Oswaldo Caldeira, 1979, estão mais próximos da telenovela que de uma abordagem política pela estética e pensamento cinematográfico. São filmes que tranquilizam a consciência e matam o corpo, o pensamento.  O cinema de Luiz Rosemberg Filho é a negação do espetáculo político cinematográfico que dá a ilusão de uma abordagem crítica, verdadeira, da história. Nesses filmes, não existe nenhuma novidade formal, a narrativa continua satisfaz o gosto do espectador colonizado pelo cinema americano e estupidificado pela linearidade televisiva
A experiência estética desses filmes em exibição na Caixa Cultural recusa todo e qualquer conformismo seja em relação ao cinema, seja em relação à política. O cinema de Rosemberg, continua pensando desde a época dos filmes da década de 1970 até sua recente produção de 2000-2015, o que é fazer cinema, o que é fazer cinema político, como provocar o espectador a pensar criticamente. Pensar criticamente é pensar em termos negativos, pensar a contrapelo da estética e do pensamento político dominante. Um dos filmes mais significativos da Mostra é uma Crônica de um industrial, 1978, análise do servilismo dos capitalistas brasileiros diante do capital multinacional no processo de hegemonia da ditadura civil-militar que dominou o País por duas décadas. O crônica é o pesado do histriônico burguês brasileiro.
O Crônica  já denuncia como em futuro próximo a burguesia e o operariado do ABC Paulista celebrariam o pacto bolsa família. O filme é sobre a tragédia de uma classe que alia-se  ao novo operariado emergente, como se a inserção no mercado de milhões de brasileiros fosse um avanço social indiscutível e que sendo questionado é tachado de reacionário. Ou Pornografia, curta-metragem, alegoria sobre os políticos e a política brasileira pós 1985. Aliás, toda ou quase toda a filmografia de Luiz Rosemberg Filho encontra  disponível no youtube. É só buscar pelo nome do diretor na busca desse canal que sua filmografia emerge como um tumor benigno no combate à doentia e histérica sociedade brasileira. Rosemberg filmou e filma um Brasil que o Brasil não viu, um Brasil cego de si mesmo, distante de si mesmo, sem afeto por si mesmo. Essa mostra portanto não é a celebração de um cineasta esquecido e desconhecido, mas, um desafio para quem ama o cinema brasileiro e não teme ser ferido pelo som, pela montagem, pelos diálogos, pelos planos e sequências de um cinema que antes de satisfazer o mercado pensa a si mesmo como um cinema marcado para sobreviver nesta e noutras décadas até que o País seja re-descoberto pela sua própria gente e escreva sua própria história.

(Leonardo Carmo, autor de “O Cinema da Metafísica Bárbara”, Editora PUC-Goiás, 2012)

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